Lição 1, Gênesis, o Livro da Criação Divina, 2 parte

Lição 1, Gênesis, o Livro da Criação Divina, 2 parte

II. Data e Autoria do Livro
a. Indicações da Escritura.
Embora o Novo Testamento fale do Pentateuco em geral como “Moisés” ou “ livro” ou “ lei” de Moisés, em parte alguma indica especificamente o livro de Gênesis com esses termos. Por seu turno, o Pentateuco fala da decisiva participação de Moisés em sua produção, desde os seus primeiros registros da maldição lançada sobre Amaleque (Êx 17:14) e do livro da aliança do Sinai ( Ê x 24:3-7), até à escrita e preservação de sua final exposição da lei (Dt 31:24-26). Sob Deus, o cerne e a substância dos livros de Êxodo e Deuteronômio são obra dele, bem co­ mo, sob Deus, os acontecimentos relatados constituem a história da sua vida.
Contudo, Moisés é sempre “ ele” , nunca “ eu” , nesses aconteci­ mentos. Até mesmo o “ registro dos itinerários” de Nm 33 está na terceira pessoa (isto é, foi escrito com base no registro feito por ele, não apenas inserido), e quando deveras fala na primeira pessoa, como em Deuteronômio, uma introdução e uma conclusão estruturam suas palavras e dão ao relato final o cunho de história, e não autobiografia. Na­ da aí corresponde às memórias de Neemias, desacompanhadas de introdução, nem às “ passagens-nós” de Atos.
Ao atribuir o Pentateuco como um todo a Moisés, o Novo Testa­ mento parece sugerir que em Gênesis há uma relação de semelhança entre o conteúdo substancial e a forma externa final, como sugere que há nos demais livros. Isto é, que o material é de Moisés, seja quem for o seu biógrafo e editor. Parece artificial, por exemplo, excluir Gênesis da expressão de nosso Senhor: “ Moisés... escreveu a meu respeito” (Jo 5:46) e da exposição que fez no caminho de Emaús: “ começando por Moisés” (Lc 24:27; cf. 44). Essa distinção jamais ocorreria a nenhum dos leitores originais dos evangelhos.
Este modo de considerar a relação entre Moisés e os livros que trazem seu nome parece concordar com algumas das pequenas pistas superficiais existentes em Gênesis. É preciso salientar, porém, que não são concludentes. Por um lado, por exemplo, 47:11 emprega os termos “ terra de Ramessés” para indicar o território israelita, expressão que podia ter vindo de modo particularmente fácil a Moisés, se é que foi contemporâneo de Ramessés II. Por outro lado, 36:31, passagem que fala dos reis que reinavam em Edom “ antes que houvesse rei sobre... Israel” , segundo qualquer forma normal de entendimento, atribui-se a si própria como sua data o tempo de Saul ou uma época posterior a ele. Contudo, esta lista de reis tanto podia ser um adendo para dar atualidade a um livro antigo, como podia indicar a data da sua composição.
Não há meio seguro de determinar isso. Outras frases de menor importância com possíveis dados sobre datas são 12:6 (cf. 13:7 “ Nesse tem­ po os cananeus habitavam essa terra” , e 14:14 “ até Dã” (cf. Jz 18:29). A primeira não é decisiva, visto que “ nesse tempo” pode significar “ nesse tempo, como agora” (cf. Js 14:11), ao passo que a outra, como 36:31, citada acima, podia indicar ou o período do autor ou de algum escriba que substituiu um nome arcaico por outro de uso corrente.
Portanto, a evidência bíblica, no livro e fora dele, deixa aberta a questão se a inclusão de Gênesis entre os escritos de Moisés significa simplesmente que ele constitui o fundamento do Pentateuco ou que Moisés o escreveu pessoalmente. Mas talvez se possa acrescentar a esta altura que o livro mostra uma amplitude de concepção e um conjunto de erudição, maestria e discernimento psicológico e espiritual, que o tornam proeminente, por consenso comum, mesmo no Velho Testamento. 
 
b. Crítica do Pentateuco. 
Geralmente se defende a idéia de que Gênesis dá-nos muito mais pistas quanto à sua composição do que as poucas mencionadas acima. A primeira delas a atrair a atenção está na variação no uso de nomes divinos e nas aparentes repetições presentes nas narrativas. Em 1753 J. Astruc tentou, por estes meios, isolar diferentes documentos usados por Moisés, e no fim do século dezoito a figura de Moisés foi sendo retirada da vista dos investigadores para ser substituída por um redator anônimo. As passagens em que se emprega o termo Deus (Elohim) eram atribuídas ao “ Elohísta” , abreviado para E; outras que falam do Senhor (Jahweh, Yahweh) foram obra do “ Yahwista” , J. Logo se decidiu que havia mais de um Elohísta, e a inicial P (fonte sacerdotal) eventualmente se aduzia a E e J para distinguir o primeiro do segundo Elohísta. Contudo, uma revolução de grande alcance teve lugar nas décadas de 1860 e 70, quando K. H. Graf, seguido por J. Wellhausen, elaborou argumentos em prol da inversão da seqüência cronológica PEJ para JEP — cuja inversão foi mais radical para o restante do Pentateuco do que para Gênesis, desde que colocou a lei levítica perto do fim em vez de perto do início da história de Israel. Quanto a Gênesis, significava que P, considerado como um escrito exílico ou pós-exílico, forneceu a estruturação final, entrelaçando sua própria versão dos acontecimentos com J na primeira parte do livro, e com J e E do capítulo 15 em diante.
Uma vez que se firmou esse método de estudo, outros sinais distintivos dos documentos foram registrados em grande número, e na segunda metade do século dezenove o Pentateuco estava tão rigorosamente
dissecado que não era raro encontrar um versículo dividido em parcelas atribuídas a duas ou mesmo três fontes, visto que se dizia que cada uma delas tem vocabulário, caráter e teologia que lhe são próprios. Havendo dois sinônimos válidos para o mesmo substantivo, verbo ou pronome, um deles podia ser virtualmente a impressão digital de J ou E, e o outro de P. No caso de genealogias ou datas, estas constituíam o especial interesse de P. Se a atenção se centraliza nas tribos do norte, provavelmente há de ter sido obra de E. Teologicamente, parecia que, em J, Deus fala diretamente com os homens, a Sua personalidade se evidencia forte­ mente. Em E, suas mensagens tendem a vir por meio de sonhos ou de anjos que falam desde o céu. Em P, Ele é majestoso e distante, planejando o progresso dos acontecimentos no sentido do estabelecimento de um estado eclesiástico.
A presença de narrativas duplas ou compostas continua sendo o sustentátulo da teoria. Histórias declaradamente distintas foram toma­ das como variantes dos mesmos acontecimentos, enquanto que narrativas únicas foram tão meticulosamente partidas e tão brilhantemente reconstituídas que se tornou lugar comum encontrar dois relatos onde antes só se mostrava um. Sob esses milagres de cirurgia, dificilmente faltaria a um Adão, por assim dizer, uma Eva, formada dos seus ossos, para contradizê-lo. Os exemplos clássicos dessa técnica são as análises das narrativas do dilúvio e de José, discutidas nas notas adicionais sobre os capítulos 8,37 e 42.
Daí por diante, o estudo do Pentateuco ramificou-se em várias direções, com crescente interesse nos últimos anos pela Crítica da Forma. Esta procura as unidades literárias subjacentes a uma obra coesa e tenta compreendê-las como produtos de vários tipos de situação. A conseqüente ênfase dada à vida da comunidade em que os escritos surgiram, modificou o conceito de JEP. Estes já não são retratados como produtos diretos, digamos, dos séculos nono, oitavo e sexto respectivamente, mas como coleções de elementos da tradição preservados e desenvolvi­ dos em diferentes círculos israelitas através dos séculos, cada qual tendo o seu quinhão de materiais muito antigos.
Embora esta abordagem, entre outras, tenha rompido algo da rigidez da crítica precedente, de modo que A. Bentzen, para citar um, pôde declarar (os itálicos são dele): Creio que devemos parar de falar em documentos. As iniciais JEP ainda são predominantemente empregadas se referem, para a maior parte dos propósitos — a despeito de Bentzen — aos documentos que, segundo se pensa, incorporam suas respectivas tradições. Mesmo as datas sugeridas para esses documentos são grosseiramente mantidas, e uns e outros especialistas continuam a subdividi-los como antes, ou a descobrir fontes até então inimaginadas. Assim, por exemplo, C. A. Simpson2 acompanha E. Meyer e outros ao dividir J em J1 e J2; R. H. Pfeiffer3acrescenta a JEP o seu “ S” edomita; e O. Eissfeldt4isola uma primitiva fonte “ básica” “ L” , para chegar a uma seqüência documentária LJEBDHP do Pentateuco.
A velha análise literária do Pentateuco ainda é de fato tratada como substancialmente válida, sendo empregada como base da maior parte das obras subsequentes, mesmo que o interesse primário tenha mudado para outras áreas. Todavia, parece digno de nota mencionar que grande parte dela não pode ser provada.
1. Os nomes divinos não constituem seguro critério para determinação da autoria, mesmo para a crítica literária (na prática), como parece que são à primeira vista. Por exemplo, muito geralmente se defende a posição de que o documento E começa fragmentariamente em 15. Todavia, com “ Elohim” completamente ausente desse capítulo e “ Yahweh” constando nele sete vezes, certos comentadores se mostram prontos para, onde necessário, atribuir ao Elohísta versículos que contêm “ Yahweh” , como base na suposição de que as últimas mãos pelas quais o texto passou desfiguraram a evidência que outrora estava presente ali. Em 22:1-14, forte passagem E, há três registros de “ Yahweh” para cinco de “ Elohim” , os quais têm sido explicados de modo semelhante ao acima exposto. Ainda em 17:1 e 21:1, P fala de “ Yahweh” . Resolver estas e outras anomalias anotando que “ Originalmente ’el... deve ter estado aqui” 5é abandonar a evidência existente só porque ela é inconveniente.
Esta situação clama por uma abordagem mais flexível, de modo que não se admitam apenas fontes possíveis, mas também a consciente e inconsciente escolha feita pelo autor, entre o vocabulário mais pessoal, “ Yahweh” e o mais geral, “ Elohim” , em certos contextos, e o impulso estético, onde a escolha teológica é livre, para empregar uma série de vezes uma expressão ou a outra, ou ainda alternar ambas
te. O uso feito por outros povos antigos dá amplo apoio a isto. Veja, por exemplo, os termos mutuamente permutáveis Baal e Hadade na lâmina ugarítica de Hadade, ou as múltiplas designações de Osiris na esteia de Ikhernofret,8sem mencionar outros exemplos.
Contra esta variação livre, Êx 3:13 e 6:3 muitas vezes são citados como textos-provas para mostrar que em Gênesis E e P não podiam ter empregado o nome Yahweh, desde que, em sua opinião, não se ouvira falar dele antes do chamado de Moisés. Mas isto é negligenciar o contexto desses versículos. Em Êx 3:14 a declaração divina, “ Eu sou...” , apresenta e esclarece o nome dado em 3:15, e este contexto é válido também para 6:3, no livro como o temos. O nome, em resumo, em qualquer sentido pleno da palavra, foi conhecido primeiro, em sua apresentação inicial. Mas o nome da mãe de Moisés, Joquebede (Êx 6:20), nome composto em que entra o termo Yahweh9é prova suficiente de que já era de uso comum, de acordo com o próprio P. Cf. E. Jacob (que aceita a análise tipo JEP): “ ...não temos na narrativa de Êxo­ do a revelação de um nome novo, mas a explicação de um nome já conhecido de Moisés e que, numa hora solene, se descobre que está repleto de um conteúdo de cuja riqueza ele estava longe de suspeitar”.
2. Outros critérios linguísticos são igualmente inconcludentes. Em primeiro lugar, como o indicou U. Cassuto,1 tratar expressões alternativas de uma dada ideia simplesmente como características de diferentes autores é esquecer as nuanças de uma palavra. Por exemplo, “ cortar” uma aliança lança luzes sobre o momento histórico e o modo como é feita; “ dar” uma aliança acentua a soberania e a graça do seu Iniciador; e “ estabelecê-la” 14dá ênfase à Sua fidelidade em efetivá-la. (Incidentalmente, os dois últimos termos coexistem em P. Não deveriam ser critérios para dividi-lo?). Ainda trazer Israel “ para fora” (J) do Egito salienta o aspecto de libertação, enquanto que levá-lo “ até” (E) atenção para o seu destino, a terra prometida. Estas distinções valem a pena. As nuanças também podem ser de ritmo e intensidade, observáveis nos princípios que regem a escolha entre o pronome “ eu” longo e o breve (’ãnõkí, atribuído pela crítica a JE, e aní, pretensa característica de P). Incidentalmente, os equivalentes ugaríticos destas duas formas podem ser encontrados lado a lado. Aparecem, por exemplo, dentro de duas linhas em Aqhat III.vi.21,23,15 onde não existe a questão de autoria dupla.
Em segundo lugar, exemplos de muitos destes usos são em número demasiado pequeno para serem estatisticamente significativos, ou excessivamente circunscritos para darem liberdade a um autor. Os dois casos dados por Eissfeldt ilustram o ponto em foco. O primeiro é o uso feito por E de “amorreus” onde J registra “ cananeus”, com referência aos nativos da terra prometida.16Somente duas passagens E podem ser apresentadas com este fim, ao passo que 15:21, que menciona ambos os povos — “o amorreu, o cananeu” , é ignorada a despeito de sua proximidade de 15:16, passagem citada. O outro exemplo dado por Eissfeldt é o par de termos siphâ e ’ãmâ, que significam “ serva”, termos atribuídos a J e E respectivamente. Contudo, o argumento começa a parecer artificial quando faz Raquel oferecer sua serva a Jacó em E (30:3) e levar a cabo o oferecimento em J (30:4). Dificilmente se pode restabelecer a confiança no método com o corolário de Eissfeldt de que ainda outra fonte — uma variante de J — trai sua presença no terceiro substantivo, pileges, referente a essas esposas subordinadas.
3. Os “parei” tendem a mostrar-se como provas mais falhas ainda, pois são apresentados como se fossem coisa quase liquida e certa quando seus relatos são parecidos. Se os acontecimentos são muito semelhantes, acha-se que o assunto dispensa argumentação; se não se as­ semelham, mostram apenas quão divergentes são as tradições. Essas suposições podem ser notadas, por exemplo, na análise típica das duas vezes em que Hagar saiu de casa. Tratando os capítulos 16 e 21 como as versões J e E de um mesmo fato, com inserções P; G. von Rad, juntamente com a maioria dos especialistas em crítica, nota o contraste existente entre as duas histórias, no sentido de que em 16 Abraão é passivo e dócil, e em 21 mostra-se responsável; Hagar é orgulhosa e impetuosa na primeira história, é vítima inocente na segunda; ainda mais, o anjo vai em busca de Hagar em 16:7, mas a chama do céu em 21:17; e assim por diante.
Essas distinções são verdadeiras e fascinantes. O que é tacitamente
descartado é toda e qualquer possibilidade de que reflitam duas ocasiões diferentes, como elas o professam. Mesmo quanto ao desprezo de Hagar pela estéril Sara em 16, e quanto a seu filho ser apanhado caçoando do menino que o desapossara, no capitulo 21, não se trata de possibilidades que se excluam mutuamente, mas de uma seqüência orgânica, retrato fiel das tensões de 14 anos de envolvimento na história da família. Pode-se dizer a mesma coisa das duas atitudes de Abraão face a essas crises, pois na segunda ocasião ele tinha um poderoso precedente para fazê-lo hesitar, porquanto Hagar tinha sido mandada por Deus de volta para casa, da primeira vez que isso acontecera (16:9). (Outros sinais de seqüência semelhantes podem ser notados nas tentativas de Abraão e Isaque de passarem por irmãos de suas esposas. Ver o comentário introdutório do capítulo 26.)
É seguir preconceito, e não seguir a razão, deixar a coerente versão bíblica dos fatos sem discutir ou, no caso de seus comentários explicativos (por exemplo, 26:1), pô-los de lado como sendo harmonizações artificiais.
4. A existência de narrativas compostas, intrincadamente entrelaçadas, está em particular sujeita a ser questionada. Como método editorial, não teria paralelo (foi sugerido pela primeira vez antes que o nosso acesso à literatura antiga do Oriente Próximo submetesse a especulação a controle), e a análise que tenta desenredar a trama baseia-se na ideia rígida e improvável do estilo literário já considerada acima, nos parágrafos 1 e 2. Mais exemplos e uma crítica do método podem-se encontrar nas notas adicionais sobre os capítulos 8, 37 e 42.19. 
 
c. Algumas Conclusões.
Estudando-se Gênesis em seus próprios termos, isto é, como um todo vivo, não como um corpo a ser dissecado, não se pode fugir da impressão de que os seus personagens são pessoas de carne e ossos, de que os acontecimentos que relata são reais, e de que o livro mesmo constitui uma unidade. Se é assim, a mecânica da composição é questão de menor importância, uma vez que as partes desse todo não estão competindo por crédito como tradições rivais, e o autor do livro não chama a atenção para as fontes da sua informação, como o fazem os escritores de Reis e Crônicas.
Entretanto, não é preciso supor que houve falta de fontes orais e escritas para um autor do período indicado na seção a. (p. 15), visto que Abraão tinha emigrado de um país rico de tradições e genealogias,20 e José (como Moisés depois dele) vivera muitos anos na atmosfera intelectual da corte egípcia, por um lado (com acesso, por exemplo, à pormenorizada etnografia refletida em Gênesis 10) e da sociedade patriarcal, por outro, com amplas oportunidades para preservar esses acervos de informação. Em>consonância com isso, têm sido feitas tentativas para encontrar indícios de material compilado em datas anteriores às que são sugeridas para as obras de J, E e P, terminadas. Descreveremos resumidamente a seguir duas destas aventuras.
P. J. Wiseman, em New Discoveries in Babylonia about Genesis,21 examinou a possibilidade de que a frase “ São estas as gerações de...” , que assinala repetidamente o livro de Gênesis em 11 lugares,22 (frase traduzida variadamente em AA), dê a*pista da guarda dos registros familiares de que cuidaram os sucessivos patriarcas. Ele interpreta este estribilho como colofão (identificação), devendo-se traduzir: “ Estas são as origens históricas de...”. Em outras palavras, em sua opinião isso sempre assinala a conclusão de uma seção, encerrando os arquivos escritos ou possuídos através dos anos por Adão (5:6), Noé (6:9), pelos filhos de Noé (10:1), e assim por diante; uma série crescente confiada aos sucessivos chefes da família.
Em apoio ao seu argumento, esse autor acentua que nenhuma seção vai além do tempo de duração da vida da pessoa assim menciona­ da; que os blocos de material refletem com precisão (por exemplo, no vocabulário e nos topónimos) os diferentes estágios que eles registram; e que a arte de escrever, largamente praticada por muitos séculos antes de Abraão, é de altíssima antiguidade. Ele arrola também um certo número de expressões duplicadas que aparecem nas proximidades dos “colofões (identificações)” , as quais podiam ser deixas, recurso empregado comumente para estabelecer ligação entre as sucessivas lâminas em sua seqüência certa.
Mas relacionar a palavra “ gerações” (tôledôt) somente com o passado tem sua fraqueza. É evidente que não se pode aplicar, por exemplo, a Rt 4:18, onde a frase “ São estas, pois, as gerações de”, exatamente igual à de Gênesis, só pode indicar o futuro. Mesmo em Gênesis ela pode ser sempre classificada como tão aplicável ao futuro quanto ao passado (e freqüentemente mais ao futuro). De 2:4 em diante, toda vez que aparece, vem seguida de um relato daquilo que partiu ponto recém- mencionado, seja esse ponto a terra nua (2:5) ou Adão (5:3) ou Noé (6:9) etc. Assim, de Terá, por exemplo, (11:27) provêm não só Abraão, que dominará a cena, mas também os parentes de Abraão dentre os quais eventualmente há de ser escolhida a noiva de Isaque. E de Jacó (37:2) surgem as 12 tribos (cuja sorte é traçada bem adiante, no capítulo 49), e não apenas o herói José. Fazer na frase uma conclusão em vez de uma introdução produz a anomalia, quando rigorosamente aplicada, de se ter toda a história de Abraão preservada por Ismael (11:27-25:12), enquanto que Isaque guarda os arquivos de Ismael(25:13-19), Esaú os de Jacó (25:19-36:1) e Jacó os de Esaú — situação de complexidade quase teatral, e conclusão que o autor evita algo arbitrariamente.
Ademais, insistindo numa completa sucessão das mencionadas lâminas, a teoria implica em que a escrita é quase tão antiga quanto o homem, para não dizer que é mesmo tão antiga como ele. O próprio Gênesis, lido de qualquer outra maneira, não exige isto. Permite defender perfeitamente a ideia de que, conquanto as genealogias tenham sido consignadas à escrita num estágio primitivo mas não especificado, o restante da história da família pode ter sido transmitido por via oral, como sua aparência sugere muitas vezes. Algumas das características da tradição oral relacionadas por E. Nielsen trazem Gênesis à mente. Exemplos: ...expressões repetidas, estilo fluente, solto, um certo ritmo e eufonia especialmente perceptíveis quando se ouve o relato...” . Vale a pena anotar que essa espécie de transmissão pode ser mais que correta quando em uso metódico.
A segunda abordagem, partindo de pressuposições completamente diversas, é a de E. Robertson,30 que chamou a atenção para as oportunidades incomuns que Samuel teve de reunir e registrar as tradições de Israel quando visitou Betel e outros centros (1 Sm 7:16) em suas viagens de rotina como juiz. Robertson recorda as condições críticas de Israel nesse período, com a velha ordem a desintegrar-se, o santuário destruído, e a exigência de um rei ameaçando paganizar a teocracia. Uma evocação da lei de Moisés deve ter sido vital num momento como esse.
Expondo com alguns pormenores como Deuteronômio é adequado a essa situação toda, Robertson acha especialmente significativo que, conforme 1 Sm 10:25, Samuel “ recitou a constituição do reino (mispat hammamlãkâ) ao povo, escreveu-a num livro e o depositou diante do Senhor” .31 Isso foi, na opinião dele, o coroamento dos trabalhos de Samuel, que resultaram na edição do Pentateuco todo, possivelmente com o auxílio de “ doutos escribas trabalhando... sob a direção de concílios eclesiásticos de Samuel” . Portanto, para Robertson, “ os diferentes escritores, ou antes, compiladores da Torah, viveram todos na mesma época e todos se ocuparam dos seus grandes empreendimentos ao mesmo tempo”.
A tese de Robertson atribui a Samuel e aos santuários uma participação mais criadora na produção do Pentateuco, do que a Escritura parece autorizar (cf. seção a., acima), porém talvez esteja apontando na direção certa. Certamente a estatura espiritual de Samuel e sua experiência nas esferas do governo, do sacerdócio e da profecia, fazem dele o arquiteto final do Pentateuco — mais provável do que qualquer dos elementos anteriores a Esdras de que temos conhecimento. E se ele foi o narrador que falou de Moisés e editou os seus escritos, as referências ocasionais aos nomes e situações pós-mosaicos tratados na seção a. estariam plenamente de acordo com os fatos.
Mas todas estas tentativas são, em diferentes graus, especulativas e de importância meramente secundária. Tem-se a impressão de que, se Paulo se deixasse envolver nessa discussão, mais cedo ou mais tarde diria: “ Falo como um tolo”, embora pudesse acrescentar: “ vocês me forçaram a isso” — pois o debate, uma vez iniciado, tem de continuar. Talvez a última palavra, outra vez do Novo Testamento, seria mais apropriadamente a amável advertência feita a Simão Pedro quando se deixou fascinar demais por Moisés e Elias, no monte, a ponto de não se lembrar da razão de ser deles. Se, em nossos estudos do Pentateuco, somos tentados a erigir algumas ou muitas tendas, para Moisés ou para uma m meu Filho amado: a ele ouvi.”
III — Origens Humanas
Dois esquemas principais da infância do homem confrontam o cristão moderno. O livro de Gênesis retrata, em poucos traços de pena, uma criatura modelada com material terreno, com o sopro de Deus e feita semelhante a Deus. A história espiritual dessa criatura vai da inocência à desobediência, rumo a um declínio moral que os princípios da civilização nada podem fazer para sustar.
O segundo quadro, o da paleontologia, mosaico de muitos fragmentos, representa uma espécie formada através de um milhão de anos ou mais, talvez, até atingir a presente forma humana, exibindo as características externas do homem moderno desde 20000 anos atrás, não somente em sua estrutura física, mas também em sua experiência como fabricante de ferramentas, de usar o fogo, de enterrar os seus mortos e, não menos, de criar obras de arte comparáveis às de qualquer período. Mesmo nessa época remota parece que se podem distinguir os aparentes precursores dos nossos principais grupos raciais,1e a espécie já se havia espalhado amplamente pelo mundo, desalojando outro tipo de homínida, “ o homem de Neandertal”, cujas relíquias, rudes como são, indicam que ferramentas, fogo e sepultamento já vinham sendo usados durante longas eras antes disso. Por outro lado, os primeiros sinais conhecidos da vida pastoril e agrícola e, mais tarde, do emprego de metais (por exemplo, cobre forjado ou ferro meteórico; cf. coment. de 4:19-24), são muito mais recentes, aparecendo no Oriente Próximo, com evidências atuais, em algum ponto entre o oitavo e o quinto milênios a. C., no máximo.
Como se relacionam um ao outro os dois quadros, o bíblico e o científico, não se esclarece imediatamente. Deve-se admitir a natureza provisória das considerações científicas (sem fazer disto um refúgio contra todas as idéias que não sejam bem-vindas) e das interpretações tradicionais da Escritura. É preciso reconhecer também os diferentes objetivos e estilos das duas abordagens: uma sondando o mundo observável; a outra revelando mormente o inobservável, a relação de Deus com o homem. Para a primeira, o estilo há de ser secamente fatual, mas a última pode requerer toda uma galeria de gêneros literários para fazer-lhe justiça e, daí, é importante não prejulgar o método e a intenção destes capítulos.
Outras partes das Escrituras, porém, oferecem certos pontos fixos ao intérprete. Por exemplo, a raça humana é do mesmo tronco (“de um” , At 17:26). E a ofensa de um fez de muitos, pecadores, e os tornou
sujeitos à morte (Rm 5:12-19). E este homem era um indivíduo tão distinguível como o foram Moisés e Jesus Cristo (Rm 5:14).2 Outros também são contados como indivíduos no Novo Testamento; por exemplo, Caim, Abel, Enoque, Noé. Estas linhas direcionais excluem a ideia de mito (que dramatiza a ordem natural para “ explicá-la e mantê-la” 3), e nos dão a certeza de que estamos lendo relatos de acontecimentos reais e essenciais.
Poderia ser que os acontecimentos fossem apresentados aqui em forma figurada (cf. os comentários introdutórios do capítulo 3), ou que fossem marcos assinalando um imenso lapso de tempo. Ainda assim, há dificuldades. Se Gênesis está abreviando uma longa história, a total vastidão das eras que ela abarca, segundo essa maneira de ver, não é problema tão agudo como o fato de que quase toda essa imensidão jaz, para o paleontólogo, entre o primeiro homem e o primeiro lavrador — isto é, nos termos de Gênesis, entre Adão e Caim, ou mesmo entre Adão dentro do jardim do Éden e Adão fora do jardim. Contudo, o nascimento de Sete, ou do seu antepassado, estabelece um limite máximo de 130 anos para isso (4:25; 5:3). Ainda que os números de Gênesis não sejam literais, as proporções levantam a mesma dificuldade. Portanto, alguma outra abordagem parece necessária.
Para o presente autor, várias linhas convergentes apontam para um Adão muito mais próximo dos nossos tempos do que os primitivos fabricantes de ferramentas e artistas, para não falar nos seus remotos antepassados. Em face disso, os modos de vida descritos em Gn 4 são das culturas neolítica e da primeira fase dos metais polidos aludidas acima, isto é, talvez de oito ou dez mil anos atrás, mais ou menos. As reminiscências de nomes e de pormenores genealógicos também sugerem
um período razoavelmente compacto entre Adão e Noé,5em vez de um período de dezenas ou centenas de milênios, extensão de tempo quase inimaginável, impossível de ser objeto de crônica. Entretanto, isto parece alargar ainda mais o intervalo entre Gênesis e as cronologias usuais.
A resposta pode estar em nossa definição do homem.
Na Escritura o homem é muito mais que o homo faber, o fabricante de instrumentos. É constituído homem nada menos que pela imagem e pelo sopro de Deus. Segue-se que bem pode acontecer que a Escritura e a ciência tenham diferenças entre si quanto às fronteiras que tentam traçar ao redor da humanidade primitiva. Os seres inteligentes de um passado remoto, cujos restos físicos e culturais dão-lhes a inegável posição de “ homem moderno” para o antropólogo, talvez ainda tenham estado decididamente abaixo do plano de vida estabelecido na criação de Adão. Se, como o texto de Gênesis de modo nenhum reprovaria,6 Deus inicialmente modelou o homem mediante um processo de evolução, seguir-se-ia que uma considerável linhagem de seres semi-humanos precedeu ao primeiro homem verdadeiro, e seria arbitrário retratá-los como seres irracionais. Nada exige que a criatura na qual Deus soprou a vida humana não fosse de uma espécie preparada de algum modo para constituir a natureza humana, já com uma longa história da inteligência prática, da sensibilidade artística e da capacidade para temor e reflexão.
Segundo esta maneira de ver, Adão, o primeiro homem, deve ter tido como seus contemporâneos muitas criaturas de relativa inteligência, espalhadas por toda a face da terra. Poder-se-ia conjecturar que estas estiveram fadadas a desaparecer, como os de Neandertal (se é que com estes aconteceu isto), ou a perecer no dilúvio, deixando os descendentes diretos de Adão, por meio de Noé, dominando sós. Contra isto, porém, é preciso ter em mente a visível continuidade entre as principais raças do presente e as do passado distante, já mencionadas. Isto parece sugerir ou uma estupenda antiguidade para Adão (a menos que todo o processo de determinação de datas da pré-história geralmente aceito esteja radicalmente equivocado, como alguns tentaram demonstrar – como por exemplo Whitcomb e Morris, op. cit),  ou a existência continuada dos “ pré-adamitas” ao lado dos “adamitas”.
segunda alternativa envolvesse alguma dúvida sobre a unidade da humanidade, seria por certo insustentável. Deus, como vimos, fez todas as nações “ de um” (At 17:26). De fato, geneticamente, segundo esta ideia, esses dois grupos pertenceriam a uma única linhagem. Mas este fato puro e simples não teria valor nenhum, como o evidencia muitíssimo bem a infrutífera busca que Adão fez de uma companheira. Contudo, pelo menos é concebível que depois da criação especial de Eva, que estabeleceu o primeiro par de vice-regentes de Deus (Gn 1:27,28) e fixou o fato de que não há nenhuma ponte natural do animal ao homem, Deus talvez tenha então conferido Sua imagem aos colaterais de Adão para introduzi-los nos mesmos domínios do ser. Neste caso, a chefia “ federal” de Adão sobre a humanidade estendeu-se à sua volta aos seus contemporâneos, e para diante à sua posteridade — e a desobediência dele deserdou a uns e a outros igualmente.

Talvez haja uma indicação bíblica sobre tal situação na surpreendente impressão de uma terra já populosa dada pelas palavras e atos de Caim em 4:14,17. Mesmo Agostinho teve de dedicar um capítulo ao trabalho de responder àqueles que“ veem dificuldade nisto”, e conquanto a resposta tradicional seja perfeitamente válida (ver comentário de 4:13,14, adiante), a persistência desta velha objeção poderia ser um sinal de que as nossas pressuposições são inadequadas. Outra vez, pode ser significativo que, com uma possível exceção,10a unidade da humanidade “ em Adão” e nossa condição comum como pecadores pela ofensa dele sejam expressas na Escritura em termos, não de hereditariedade," mas simplesmente de solidariedade. Em parte nenhuma encontramos aplicado a nós algum argumento sobre a descendência física semelhante ao de Hb 7:9,10 (onde se diz que Levi participou do ato de Abraão por estar “ ainda nos lombos do seu antepassado” ). Antes, o que fica demonstrado é que o pecado de Adão envolveu todos os homens porque ele foi o chefe federal da humanidade, algo como, na morte de Cristo, “um morreu por todos, logo todos morreram” (2 Co 5:14). A paternidade não desempenha nenhum papel quanto a fazer de Adão a figura daquele “ que havia de vir” (Rm 5:14).