Lição 1, EZEQUIEL, O ATALAIA DE DEUS
https://youtu.be/a44IHHSIsLY (resenha - resumo do trimestre)
https://youtu.be/EPn1oEk2YPQ Vídeo desta Lição
Tema: O Juízo e a Glória de Deus
Data: 590-570 a.C.
Considerações Preliminares
O contexto histórico do livro de Ezequiel é a Babilônia durante os primeiros anos do exílio babilônico (593-571 a.C.). Nabucodonosor levou cativos os judeus de Jerusalém para a Babilônia em três etapas: (1) em 605 a.C., jovens judeus escolhidos foram deportados para Babilônia, entre eles Daniel e seus três amigos; (2) em 597 a.C., 10.000 cativos foram levados à Babilônia, estando Ezequiel entre eles; e (3) em 586 a.C. as forças de Nabucodonosor destruíram totalmente a cidade e o templo, e a maioria dos sobreviventes foi transportada à Babilônia. O ministério profético de Ezequiel ocorreu durante a hora mais tenebrosa da história do AT: os sete anos que precederam a destruição, em 586 a.C. (593-586 a.C.), e os quinze anos seguintes (586-571 a.C.). O livro provavelmente completou-se cerca de 570 a.C. Ezequiel, cujo nome significa “Deus fortalece”, era de família sacerdotal (1.3) e passou os vinte e cinco primeiros anos da sua vida em Jerusalém. Estava se preparando para o trabalho sacerdotal do templo quando foi levado prisioneiro à Babilônia em 597 a.C. Uns cinco anos mais tarde, aos trinta anos (1.2,3), Ezequiel recebeu sua chamada profética da parte de Deus, e a partir daí ministrou fielmente durante vinte e dois anos, pelo menos (29.17). Ezequiel tinha uns dezessete anos quando Daniel foi deportado e, portanto, os dois eram praticamente da mesma idade. Ezequiel e Daniel foram contemporâneos de Jeremias, porém mais jovens que ele e, provavelmente, foram por ele influenciados, por ser profeta mais velho em Jerusalém (cf. Dn 9.2). Quando Ezequiel chegou à Babilônia, Daniel já era bem conhecido como homem de elevada sabedoria profética; Ezequiel refere-se a ele três vezes no seu livro (14.14,20; 28.3). Ao contrário de Daniel, Ezequiel era casado (24.15-18), e vivia como um cidadão comum entre os exilados judeus, junto ao rio Quebar (1.1; 3.15,24; cf.Sl 137.1).
O livro claramente atribui suas profecias a Ezequiel (1.3; 24.24). O uso do pronome pessoal “eu” através do livro, juntamente com a harmonia estilística e a linguagem, indicam a autoria exclusiva
de Ezequiel. As profecias de Ezequiel têm datas exatas por causa de sua organização em datá-las (cf. 1.1,2; 8.1; 20.1; 24.1; 26.1; 29.1,17; 30.20; 31.1; 32.1,17; 33.21; 40.1). Seu ministério começou em julho de 593 a.C. e continuou, pelo menos, até a última profecia registrada em abril de 571 a.C.
Propósito
O propósito das profecias de Ezequiel foi duplo: (1) entregar a mensagem divina do juízo ao povo apóstata de Judá e Jerusalém (1—24) e às sete nações estrangeiras ao seu redor (25—32); e (2) conservar a fé do remanescente fiel a Deus no exílio, concernente à restauração de seu povo segundo o concerto e à glória final do reino de Deus (33—48). O profeta também ressaltava a responsabilidade pessoal de cada indivíduo diante de Deus, ao invés de somente culpar os antepassados e seus pecados como a causa do exílio como julgamento (18.1-32; 33.10-20)
Visão Panorâmica
O livro de Ezequiel está bem organizado, e seus quarenta e oito capítulos dividem-se naturalmente em quatro seções principais: (1) A seção introdutória (1—3) descreve a poderosa visão que Ezequiel teve da glória e do trono de Deus (cap. 1) e o encargo divino que o profeta recebeu para seu ministério profético (2; 3).
(2) A segunda seção (4—24) contém a mensagem contundente de Ezequiel sobre o juízo vindouro e inevitável de Judá e Jerusalém, devido a sua obstinada rebeldia e apostasia. Durante os últimos sete anos de Jerusalém (593-586 a.C.), Ezequiel advertiu os judeus de Jerusalém e os cativos em Babilônia, que não deviam alimentar a falsa esperança de que Jerusalém sobreviveria ao julgamento. Os pecados passados e presentes de Jerusalém provocavam a sua segura ruína. Ezequiel trombeteia sua mensagem profética de juízo através de várias visões, parábolas e atos simbólicos. Os capítulos 8—11 descrevem como Deus levou Ezequiel a Jerusalém numa visão para profetizar contra a cidade. No capítulo 24, a morte da querida esposa do profeta serviu de parábola e sinal da destruição de Jerusalém.
(3) A terceira seção (25—32) contém profecias de juízo contra sete nações estrangeiras que se alegravam da calamidade de Judá. Na profecia sobremaneira longa contra Tiro, aparece uma descrição mascarada de Satanás (28.11-19) como o verdadeiro agente por trás do rei de Tiro.
(4) A seção final do livro (33—48) assinala uma transição na mensagem do profeta, que mudou do terrível juízo para o consolo e a esperança futuros (cf. Is 40—66). Depois da queda de Jerusalém, Ezequiel profetiza a respeito do avivamento e restauração futuros, quando, então, Deus será o verdadeiro pastor do seu povo (cap. 34) e dará aos seus um “novo coração” e um “novo espírito” (cap. 36). Neste contexto surge a famosa visão de Ezequiel, de um exército de ossos secos que ressuscitam mediante a mensagem profética (cap. 37). O livro termina com a descrição da restauração escatológica do templo santo, da cidade santa de Jerusalém, e da terra santa de Israel (40—48).
Características Especiais
Sete características principais assinalam o livro de Ezequiel. (1) Contém um grande número de visões surpreendentes, de parábolas arrojadas e de ações simbólicas e excêntricas, como um meio de expressão da revelação profética de Deus. (2) Seu conteúdo é organizado e datado com cuidado: registra mais datas do que qualquer outro livro profético do AT. (3) Duas frases características ocorrem do começo ao fim do livro: (a) “então saberão que eu sou o SENHOR” (sessenta e cinco ocorrências com suas variantes); e (b) “a glória do SENHOR” (dezenove ocorrências com suas variantes). (4) Ezequiel recebe de Deus, de modo peculiar, os nomes de “filho do homem” e “atalaia”. (5) Este livro registra duas grandiosas visões do templo: uma delas mostra-o profanado e à beira da destruição (8—11), e a outra, purificado e perfeitamente restaurado (40—48). (6) Mais do que qualquer outro profeta, Ezequiel recebeu ordens de Deus para identificar-se pessoalmente com a palavra profética, expressando-a através do simbolismo profético. (7) Ezequiel salienta a responsabilidade pessoal do indivíduo e sua responsabilidade diante de Deus.
O Livro de Ezequiel ante do NT
A mensagem dos capítulos 33—48 concerne, em síntese, à futura obra redentora de Deus conforme revela no NT. Fala não somente da restauração física de Israel à sua terra, como também da sua restauração final futura, i.e., sua plena realização reservada por Deus, como o Israel espiritual, junto às nações como resultado de missões. Profecias importantes em Ezequiel a respeito do Messias do NT: Ez 17.22-24; 21.26,27; 34.23,24; 36.16-38; 37.1-28. O Livro de Ezequiel - BEP - CPAD CAPÍTULO 1 1.1 NO TRIGÉSIMO ANO. Esta expressão refere-se, provavelmente, à idade de Ezequiel. Nessa ocasião, ele habitava entre os cativos em Babilônia, para onde fora levado em 597 a.C., nove anos após a chegada ali de Daniel, e onze anos antes da destruição de Jerusalém. Ezequiel foi chamado para ministrar como profeta durante o cativeiro, proclamando a mensagem de Deus aos exilados, ao mesmo tempo em que Jeremias pregava em Jerusalém. Ezequiel ministrou durante vinte e sete anos, pelo menos. O cativeiro babilônico de Judá durou aproximadamente setenta anos
(de 605 a 538 a.C.).
1.3 VEIO... A PALAVRA DO SENHOR A EZEQUIEL. Ezequiel era sacerdote. Ele recebeu sua chamada profética em 593 a.C., quatro anos depois de chegar à Babilônia. Certamente, estabeleceu-se junto ao rio Quebar, possivelmente um canal navegável, ligado ao rio Eufrates, cerca de 80 km a sudeste de Babilônia. Sua missão era expor a razão do cativeiro, predizer a queda de Jerusalém, levar o povo exilado de volta a Deus e avivar a esperança dos exilados mediante a promessa divina de sua restauração.
1.4 OLHEI. Ezequiel recebe uma visão da glória e da santidade de Deus (ver v. 28 nota). As visões de Deus (v. 1) eram fundamentais ao seu ministério entre exilados.
1.5 QUATRO ANIMAIS. Estes seres viventes são posteriormente identificados como querubins (10.20). Os querubins são seres angelicais que manifestam aos seres humanos a santidade e a glória de Deus (cf. 1 Cr 28.18; Sl 18.10; ver o estudo OS ANJOS, E O ANJO DO SENHOR). Podem acompanhar a Deus em ocasiões de condenação ou de bênção. Guardaram o jardim do Éden depois da queda (Gn 3.22-24). Nas extremidades do propiciatório, sobre a arca da aliança, estavam dois querubins de ouro (Êx 25.18-22). Nesta visão de Ezequiel, os querubins manifestavam aos exilados a glória e a santidade de Deus, através da dita visão
1.10 A SEMELHANÇA DO SEU ROSTO. Os rostos de homem, de leão, de boi e de águia representam a criação por Deus, dos seres viventes (cf. Ap 4.7). Nos novos céus e na nova terra, a totalidade da criação de Deus, plenamente redimida da maldição do pecado, manifestará a glória divina.
1.12 O ESPÍRITO. Os querubins são dirigidos pelo Espírito que, sem dúvida, refere-se ao Espírito de Deus (cf. v. 20).
1.13 BRASAS DE FOGO ARDENTES. Estas brasas falam da santidade de Deus (cf. Êx 3.1-5) e o seu juízo no castigo do pecado (cf. Ap 20.14,15). O fogo que se movimenta simboliza a energia e o poder do Espírito Santo, o qual está sempre em ação e jamais descansa.
1.16-25 O ASPECTO DAS RODAS. Ezequiel vê uma espécie de carro-trono em movimento constante. Deus é manifesto num trono móvel que nunca pára, e que vai para onde o Espírito ordena. A linguagem figurada simboliza a soberania de Deus sobre todas as coisas, e a sua presença em todas as esferas da sua criação. Ele está presente com os exilados às margens do rio Quebar.
1.26 COMO QUE A SEMELHANÇA DE UM HOMEM. Ezequiel vê Deus sentado num trono, na semelhança de um homem. Esta visão mostra que quando Deus resolveu revelar-se plenamente, Ele o fez em forma humana mediante Jesus Cristo (cf. Fp 2.5-7; Cl 2.9).
1.28 DA GLÓRIA DO SENHOR. Este versículo provê o significado da visão toda, i.e., uma visão da glória de Deus (ver o estudo A GLÓRIA DE DEUS). (1) Deus revelou a Ezequiel a sua glória e poder a fim de prepará-lo para a obra à qual Ele o chamava. O Senhor ia continuar a aparecer a Ezequiel no decurso da sua vida, a fim de sustentá-lo naquele ministério (Ez 3.12,23,24; 8.2-4; 9.3; 10.1-22; 11.22,23; 43.2-4). (2) O aparecimento da glória de Deus a Ezequiel indicava que ela já saíra do templo de Jerusalém (cf. 1 Rs 8.11; Sl 26.8; 63.2), e que agora estava sendo manifesta aos exilados. Ezequiel profetizou posteriormente que a glória de Deus voltaria a Canaã e a Jerusalém (ver 43.2,3,7). (3) Assim como Ezequiel precisava de uma visão da glória de Deus a fim de prepará-lo para servir ao Senhor, assim também nós precisamos experimentar o poder da glória e a santidade de Deus antes de ingressarmos na sua obra (cf. Is 6). Obtemos a compreensão de Deus em toda a sua glória mediante Jesus Cristo (cf. Jo 1.14), o Espírito Santo (1 Pe 4.14) e a Palavra de Deus (2 Co 3.7-11; ver At 1.8 notas) O Livro de Ezequiel - BEP - CPAD CAPÍTULO 2 2.1 FILHO DO HOMEM. Deus se refere a Ezequiel mais de noventa vezes como filho do homem . Este título ressalta a humildade e a fragilidade do profeta, e servia para lembrar-lhe da sua dependência do poder do Espírito Santo para capacitá-lo a cumprir o seu ministério. Jesus também empregava este título em alusão a si mesmo (Mt 8.20; 9.6; 11.19; Mc 2.28; 8.31,38; 9.9; Lc 5.24; Jo 3.13), salientando o seu relacionamento com a raça humana e sua dependência do Espírito Santo (cf. Dn 8.17).
2.2 ENTROU EM MIM O ESPÍRITO. Ezequiel fica revestido do poder do Espírito de Deus para proclamar a mensagem de Deus. Hoje, como naquela ocasião, Deus requer que seu povo receba o revestimento do Espírito Santo para pregar o evangelho com eficácia a todas as nações (ver At 1.8; 2.4).
2.5 ESTEVE NO MEIO DELES UM PROFETA. Deus precisa de servos autênticos e fiéis para proclamarem a sua Palavra ao povo. Servos que falem tudo quanto Ele quer, sem medo e sem transigência com o erro. Sua mensagem não é determinada pela reação dos ouvintes, mas, sim, entregue com total lealdade a Deus e à sua verdade (v. 7). Se alguns ouvintes decidem resistir a Deus e à sua lei, que o façam, porém esses profetas vão continuar a entregar a mensagem de Deus, repreendendo o pecado e a rebeldia, e conclamando o povo a ser fiel ao Senhor.
2.10 LAMENTAÇÕES. A mensagem inicial de Ezequiel seria de juízo, e haveria de causar lamentações entre os que a ouvissem. O Livro de Ezequiel - BEP - CPAD CAPÍTULO 3 3.1 COME ESTE ROLO. No rolo, estavam escritas as palavras e juízos de Deus para o seu povo. Comer o rolo simbolizava que Ezequiel precisava receber a mensagem de Deus, e comprometer-se com ela antes de proclamá-la.
3.3 ERA NA MINHA BOCA DOCE COMO O MEL. Embora a mensagem de Ezequiel fosse de destruição e de lamentação, Deus fez com que ela se tornasse doce como mel, para o próprio profeta. A Palavra de Deus, pelo fato de ser a palavra divina, será amada e apreciada por todos que se dedicam a Deus e à sua causa.
3.7 NÃO TE QUERERÁ DAR OUVIDOS. O povo não queria acreditar na mensagem profética de julgamento contra Jerusalém, porque continuava endurecido contra a verdade. Para ajudar Ezequiel a enfrentar aquela rejeição iminente, Deus prometeu dar-lhe coragem e determinação para proclamar a Palavra profética em qualquer situação.
3.14 EU ME FUI MUI TRISTE. Ezequiel ficou muito triste por causa das calamidades iminentes que Deus o incumbiu de anunciar. Embora angustiado, ele permaneceu fiel à sua vocação. Um sinal seguro de que o crente está bem diante de Deus é que ele ama a justiça, e detesta a iniqüidade, assim como Deus o faz (ver Hb 1.9 nota).
3.18 AO ÍMPIO: CERTAMENTE MORRERÁS. Ezequiel era um atalaia para advertir os seus compatriotas de que a sua persistência no pecado e na rejeição a Deus resultava em morte. Se Ezequiel deixasse de advertir os ímpios, ele seria considerado responsável pela morte deles. (1) Segundo o novo concerto, o fiel ministro de Deus também deve advertir sua congregação a que não viva no pecado, para que não seja excluída do reino de Deus (ver 1 Co 6.9 nota; Gl 5.21 nota; Ef 5.5 nota). Aqueles que ensinam que o crente pode viver uma vida ímpia e imoral sem comprometer a sua salvação eterna, sofrerão eles mesmos o severo juízo divino. (2) Sempre devemos lembrar que Deus nos ordenou ir ao mundo inteiro e proclamar o evangelho (Mt 28.18-20; At 1.8), e que isso inclui a advertência da morte eterna para todos aqueles que não se arrependerem, nem crerem em Cristo (cf. At 17.22-31). Deus, portanto, constituiu a igreja como um atalaia (ver Mt 18.15 nota).
3.20 ELE MORRERÁ. O justo que se desvia dos caminhos do Senhor, e passa a viver na impiedade, e não se arrepende, sofrerá juízo divino e morrerá. Notem-se as palavras do apóstolo Paulo: se viverdes segundo a carne, morrereis , i.e., tereis a morte eterna (Rm 8.13).
3.26 FICARÁS MUDO. Ezequiel foi impedido de falar ao povo, a não ser quando recebia uma mensagem direta do Senhor. Os israelitas recusaram-se a ouvir e obedecer à mensagem dos profetas. Deus os deixou sem sua palavra, ao determinar o silêncio do profeta Ezequiel. O mutismo de Ezequiel durou aproximadamente sete anos e meio, até a queda de Jerusalém (24.27; 33.32) COMENTÁRIOS DA REVISTA BETEL - 1° Trimestre De 2022, Tema: EZEQUIEL, O Profeta com a Mensagem de Juízo, Arrependimento, Restauração e Manifestação da Gloria de DEUS, Escola Bíblica Dominical.
Ressaltar a incumbência do profeta Ezequiel.
Expor a vocação visionária do profeta Ezequiel.
EZEQUIEL 2
TERÇA / Jr 33.6-16 – DEUS nunca se esquece dos fiéis.
QUARTA / Ez 11.17-20 – A promessa de um novo coração.
SEXTA / At 14.17 – É preciso submeter-se ao momento de DEUS.
SÁBADO / 1 Co 1.27-29 – DEUS usa quem Ele quer.
1- Contexto histórico
2- A incumbência do profeta Ezequiel
3- Um profeta com vocação visionária
Conclusão
1) A chamada implicava em se pôr de pé, se dispor, sair da acomodação e da inércia [Ez 2.1];
2) Depois do chamado, é preciso falar em nome do Senhor [Ez 2.4];
3) Depois de assumir a chamada, é preciso falar, quer ouçam, quer deixem de ouvir [Ez 2.5];
4) Depois de receber a chamada, é preciso se destacar no meio em que vive, porque o povo tem de saber que ele é profeta [Ez 2.5];
5) Depois de receber a chamada, é preciso se impregnar da Palavra, dar comida em forma de rolo ao ventre, para depois oferecer aos outros. Quem não tem para si mesmo não pode oferecer aos demais [Ez 3.1];
6) Para receber a chamada, não pode temer o povo, nem as palavras que saem deles [Ez 2.6];
7) Quem recebe a chamada não pode se assustar com sarças, espinhos e escorpiões [Ez 2.6];
8) Quem recebe a chamada precisa saber que vai enfrentar conspiração de pessoas que não querem ouvir as verdades de DEUS e serem confrontadas [Ez 2.4-6].
EZEQUIEL - Com. Bíblico - Matthew Henry
(Exaustivo) AT e NT
UMA EXPOSIÇÃO COM OBSERVAÇÕES PRÁTICAS
Quando refletíamos sobre os escritos dos profetas que falam sobre coisas que
deveriam acontecer, parecia-nos receber o mesmo convite que o apóstolo João (Ap
4.1), Chega mais perto. Porém, quando refletimos sobre a profecia deste livro, é
como se a voz dissesse, Chega mais alto. Então, avancemos no tempo (pois
Ezequiel profetizou no cativeiro, ao passo que Jeremias profetizou bem antes
dele) para que voemos bem alto em direção a descobertas ainda mais sublimes da
glória divina. As águas do santuário ficam cada vez mais profundas e tão
insondáveis que em alguns lugares dificilmente poderão ser medidas. No entanto,
embora sejam assim tão profundas, delas fluem rios que alegram a cidade de nosso
Deus, o lugar santo das moradas do Altíssimo. Em relação a esta profecia que se
encontra diante de nós, podemos indagar:
I
Quanto ao seu autor – é Ezequiel. Seu nome significa a força de Deus. Ou seja,
alguém que é revestido ou fortalecido por Deus. Ele preparou sua mente para o
serviço, e Deus lhe deu forças. Aquele a quem Deus chama para o seu serviço, Ele
também se encarrega de capacitar. Se Ele entrega a alguém uma missão, concede o
poder para executá-la. Ezequiel respondeu positivamente quando Deus lhe disse (e
não há nenhuma dúvida de que disse): Fortaleci o teu rosto contra os rostos
deles. O erudito Selden, em seu livro De Diis Syris, diz que, segundo a opinião
de alguns anciãos, Ezequiel era igual àquele Nazarus Assyrius que Pitágoras
(segundo o seu próprio relato) teve como tutor durante algum tempo. Temos razões
para pensar que muitos dos filósofos gregos estavam familiarizados com os
escritos sagrados, de onde tiraram alguns dos seus melhores conceitos. Se
pudermos dar crédito à tradição dos judeus, Ezequiel foi condenado à morte pelos
cativos da Babilônia por causa da sua coragem e sinceridade em reprová-los.
Consta que ele foi arrastado pelas pedras até que seu cérebro fosse dilacerado.
Um historiador árabe diz que Ezequiel foi condenado à morte e depois queimado no
sepulcro de Sem, filho de Noé. Assim relata Hottinger na obra Thesaur. Philol.,
livro 2, capítulo 1.
II
Em relação à data do livro – o lugar e a data em que foi escrito. O cenário
desse livro é a Babilônia, quando ainda era a sede da escravidão do Israel de
Deus. Foi lá que as profecias desse livro foram pregadas, e lá elas foram
escritas, na ocasião em que o próprio profeta e o povo a quem elas eram
dirigidas, ainda eram mantidos prisioneiros. Ezequiel e Daniel são os únicos
profetas escritores do Antigo Testamento que viveram e profetizaram em vários
lugares, menos na terra de Israel. Alguns incluem o profeta Jonas nesta
condição, por ter sido enviado a Nínive para profetizar. Ezequiel expressou suas
profecias no início do cativeiro, e Daniel profetizou quando este cativeiro
estava quase terminando. Havia um sinal da boa vontade de Deus em relação ao seu
povo e dos seus misericordiosos desígnios durante a aflição pela qual estavam
passando: o fato de ter introduzido dois profetas entre eles a fim de
convencê-los, no início das suas provações, de que estariam seguros e não seriam
humilhados. Essa era a missão de Ezequiel, que também deveria consolá-los, pois
nos últimos tempos do cativeiro eles se sentiam desanimados e abatidos. Se o
desejo de Deus fosse matá-los, Ele não teria lançado mão de meios tão eficazes e
adequados para curá-los.
III
Em relação ao tema e ao escopo 1. Existem muitas coisas nesse livro que são
obscuras e difíceis de entender, especialmente no começo e no final, de tal
maneira que os rabinos judeus proibiram a sua leitura aos jovens com menos de
trinta anos de idade a fim de evitar que as dificuldades que lá fossem encontrar
pudessem de alguma forma predispô-los contra as Escrituras. Porém, se lermos
essas difíceis partes das Escrituras com humildade e reverência, pesquisando-as
diligentemente, embora não sejamos capazes de desatar todos os nós que
encontrarmos, da mesma maneira que não somos capazes de resolver todos os
fenômenos do livro da natureza, ainda assim poderemos reunir, como acontece com
o livro da natureza, grandes coisas para confirmar a nossa fé e fortalecer a
nossa esperança no Deus que adoramos. 2. Embora as visões desse livro sejam
complexas para a maioria de seus leitores, ainda assim os seus sermões são, na
sua maioria, bastante claros. O seu principal objetivo é mostrar ao povo de Deus
as transgressões que estavam praticando, e que deveriam se arrepender e deixar
de se lamentar. Parece que esse profeta estava sendo constantemente ouvido (pois
somos informados de que se sentaram perante ele, da mesma maneira como o povo
havia se sentado para ouvir as palavras de Deus em 33.31). Também somos
informados de que ele era ocasionalmente consultado, pois lemos que os anciãos
de Israel vinham até ele para, através das suas palavras, conhecer a vontade do
Senhor, capítulo 14.1,3. Além de ser de grande utilidade para os próprios
cativos ter a presença de um profeta entre si, ela também servia como um
testemunho da sua santa religião contra os opressores que costumavam
ridicularizá-los. 3. Embora as recriminações e as censuras sejam aqui bastante
severas e corajosas, ao nos aproximarmos do final do livro foram transmitidas
certezas consoladoras sobre a grande misericórdia que Deus havia reservado para
eles. E por fim, vamos encontrar algumas palavras que fazem referência aos
tempos do Evangelho e que tiveram o seu cumprimento no reino do Messias sobre
quem, na verdade, esse profeta fala muito menos do que qualquer dos outros
profetas. Porém, ao começar falando sobre os terrores do Senhor ele está
preparando o caminho de Cristo. Através da lei ficamos conhecendo o pecado.
Portanto, ela deve se tornar o nosso aio para nos levar a Cristo. Entre os
capítulos 1 e 3 temos as visões que representam as credenciais do profeta. As
censuras e a as ameaças estão entre os capítulos 4 e 24. Nas palavras de consolo
que encontramos na última parte desse livro, temos também mensagens enviadas às
nações vizinhas à terra de Israel, cuja destruição foi prevista (capítulos 25 a
35) a fim de abrir caminho para a restauração do Israel de Deus e a
reestruturação da sua cidade e do seu Templo, o que foi previsto a partir do
capitulo 36 até o final desse livro. Aqueles que desejam aplicar os consolos a
si mesmos, também devem aplicar a si mesmos as suas convicções.
A Primeira Visão de Ezequiel
Junto ao Rio Quebar
Ezequiel 1. 1-3
As circunstâncias da visão recebida por Ezequiel, através da qual lhe foram
transmitidas a sua missão e as suas instruções, foram particularmente explicadas
aqui a fim de que a narrativa fosse entendida como autêntica e não romântica.
Será útil manter em mente quando e onde Deus decidiu manifestar-se às nossas
almas de uma maneira peculiar, para que o nosso retorno ao dia e o nosso retorno
ao lugar do altar (Gênesis 13.4) possam reviver a agradável lembrança do favor
que recebemos de Deus. “Lembra-te! Ó minha alma! E nunca te esqueças das
comunicações de amor divino que recebeste nessa ocasião e nesse mesmo lugar:
conte aos outros o que Deus fez por ti.”
I
Aqui foi registrado o momento em que Ezequiel teve essa visão. Foi no trigésimo
ano, v.1. Alguns entendem que ela aconteceu no trigésimo ano da vida do profeta.
Ele já tinha alcançado a idade adequada para assumir a plena execução da prática
do sacerdócio. Porém, como havia sido proibido pela iniqüidade e pela calamidade
daqueles tempos, agora que eles não tinham mais templo, nem altar, Deus resolveu
naquele momento convocá-lo para lhe conceder a dignidade de um profeta. Outros
entendem que era o trigésimo ano a partir do início do reinado de Nabopolassar,
pai de Nabucodonosor, a partir do qual os caldeus deram início a uma nova
contagem de tempo, da mesma maneira como haviam feito com Nabonassar 123 anos
antes. Nabopolassar reinou durante dezenove anos e esse era o décimo primeiro
ano do seu filho, o que perfaz os trinta anos. E era bastante adequado que
Ezequiel, quando estava na Babilônia, usasse a contagem de tempo daquele país da
mesma maneira como quando estamos em países estrangeiros costumamos usar as
datas de acordo com estes locais. Mais tarde, ele usa a melancólica contagem de
tempo do seu próprio país, observando (v. 2) que se tratava do quinto ano do
cativeiro do rei Joaquim. Mas a paráfrase dos caldeus fixa outra era, dizendo
que esse era o trigésimo ano depois que o sacerdote Hilquias havia fundado o
livro da lei na casa do santuário, à meia noite, depois que a lua havia se posto
nos dias do rei Josias. É verdade que essa data corresponde exatamente a trinta
anos a partir desse momento e por ter sido um acontecimento tão notável (pois
colocou o estado judeu numa nova provação) seria bastante justo passar a contar
o tempo a partir daí. Talvez o profeta esteja falando imprecisamente sobre os
trinta anos, tendo uma visão tanto nesse evento como na contagem de tempo dos
caldeus, que eram coincidentes. Foi no quarto mês (que corresponde ao nosso mês
de Junho), e no quinto dia desse mês, que Ezequiel teve a sua visão, v. 2. É
provável que tenha sido num sábado, porque lemos (Ez 3.16) que foi ao fim de
sete dias, e podemos muito bem supor que o texto estaria referindo-se ao sábado
seguinte quando a palavra do Senhor viria novamente ao profeta. Da mesma
maneira, João estava no Espírito no dia do Senhor, quando teve as visões do
Todo-Poderoso, Apocalipse 1.10. Por meio delas Deus concedeu honra aos seus
mandamentos, quando os inimigos escarneciam deles, Lamentações 1.7. E foi
através das extraordinárias manifestações da Sua pessoa que Ele incentivou o seu
povo a continuar desfrutando o ministério dos profetas, todos os sábados.
II
As melancólicas condições pelas quais o profeta estava passando quando recebeu
de Deus essa honra, através da qual foi capaz de favorecer o povo de Deus com as
suas visões. Ele se encontrava entre os cativos na terra dos caldeus, ao lado do
rio Quebar, e era o quinto ano do cativeiro de Joaquim. Observe que:
1. Alguns dentre o povo de Deus estavam agora cativos na terra dos caldeus, mas
o corpo da nação judaica havia permanecido na sua própria terra. Os cativos
representavam as primícias do cativeiro e eram alguns dos melhores entre o povo.
Segundo a visão de Jeremias, eles eram os figos bons que Deus havia colocado na
terra dos caldeus para o seu próprio bem (Jr 24.5). E para que isto fosse para o
bem deles, Deus colocou um profeta entre eles, para lhes ensinar a lei, e só
seriam castigados depois (Sl 94.12). Note que é sinal de uma grande misericórdia
quando a palavra de Deus é trazida até nós, e também é um grande dever nos
dedicarmos a ela diligentemente quando estamos passando por alguma aflição. As
palavras de instrução, assim como a vara do castigo, podem ser de grande
utilidade para nós, se estiverem combinadas e coincidirem uma com a outra. A
palavra serve para explicar a vara, e a vara serve para reforçar a palavra. Em
conjunto, ambas transmitem sabedoria. Um homem que estiver sofrendo ou doente,
terá muita alegria se tiver um mensageiro ao seu lado, um intérprete, sim, um
entre milhares. A sua tarefa será manter os seus ouvidos abertos e prontos para
receber a instrução, Jó 23.23. Uma das disputas que Deus tinha com os judeus,
quando os enviou ao cativeiro, foi provocada por terem caçoado dos seus
mensageiros e abusado dos seus profetas. Mas mesmo quando estavam sofrendo por
causa desses pecados, Ele os favoreceu com a sua misericórdia. Seria muito ruim
se, por vezes, Deus não nos concedesse esses meios de graça e salvação os quais,
insensatamente, afastamos de nós. Durante o cativeiro, eles estavam destituídos
dessa habitual assistência para a sua alma. Portanto, Deus os levou até ela,
pois se os filhos de Deus tiverem de alguma forma a sua educação prejudicada,
eles receberão alguma outra forma de compensação. Mas observe que foi no quinto
ano do cativeiro e não antes que Ezequiel foi escolhido entre eles. Deus os
havia deixado tanto tempo sem a presença de qualquer profeta, que eles começaram
a se lamentar perante o Senhor e a se queixar de que não viam os seus sinais e
que não havia ninguém para lhes dizer até quando aquela situação iria durar
(Salmo 74.9). Então, eles saberiam como dar valor a um profeta, e as descobertas
que Deus permitiria que fizessem a Seu respeito seriam mais aceitáveis e
consoladoras. Os judeus que haviam permanecido na sua própria terra tinham a
presença de Jeremias entre si, e aqueles que tinham sido levados ao cativeiro
contavam com a presença de Ezequiel. Pois Deus preparará um tutor para os Seus
filhos, onde quer que tenham sido dispersos.
2. O profeta Ezequiel estava entre os cativos, entre aqueles que foram colocados
ao lado do rio Quebar. Pois era para o lado dos rios da Babilônia que eles eram
enviados, e era nos salgueiros que nasciam ao lado dos rios que penduravam as
suas harpas, Salmos 137.1,2. Os plantadores da América se estabelecem ao lado
das margens dos rios, e talvez esses cativos tivessem sido empregados pelos seus
senhores para melhorar algumas partes do país situadas ao longo das margens dos
rios que ainda não tinham sido cultivadas. Como os nativos haviam sido
convocados para a guerra, ou empregados nas manufaturas, eles colocavam os
cativos nas margens dos rios para que todos os bens que fizessem pudessem ser
mais facilmente transportados através das suas águas. Os intérpretes não
concordam entre si sobre a localização desse rio Quebar. Mas Ezequiel estava
entre os cativos que estavam na sua margem. Observe aqui: (1) Muitas vezes os
melhores homens, e aqueles que são mais caros a Deus, compartilham não só as
vicissitudes habituais da vida, como também os castigos públicos e nacionais que
são causados pelo pecado. Eles se sentem aborrecidos por que não contribuíram
para essa culpa, e parece que a diferença entre os bons e os maus origina-se não
dos eventos que lhes aconteceram, mas do desequilíbrio e da disposição dos seus
espíritos em meio a estes eventos. E como não só os homens virtuosos, mas também
os profetas compartilham o que é pior nesses castigos, podemos inferir, então,
com a maior segurança, que existem recompensas reservadas para eles no estado
futuro. (2) Palavras de acusação, conselhos e consolos servirão melhor àqueles
que se encontrarem em estado de aflição quando forem recebidas dos seus
companheiros de infortúnio. Os cativos serão mais bem instruídos por alguém que
também seja um cativo entre eles e que, através da experiência própria, conheça
os seus sofrimentos. (3) O espírito da profecia não estava confinado à terra de
Israel, pois algumas das mais brilhantes revelações foram feitas na terra dos
caldeus, e isso não deixou de ser um feliz presságio para a instalação da igreja
no mundo dos gentios através da divina revelação sobre a qual ela foi edificada.
Semelhantemente, mais tarde, quando o reino do Evangelho estava prestes a se
instalar, a dispersão dos judeus contribuiu para que o conhecimento de Deus se
expandisse. (4) Onde quer que estejamos podemos manter a nossa comunhão com
Deus. Undique ad caelos tantundem est viae – das extremidades mais remotas da
terra podemos encontrar um caminho aberto em direção ao céu. (5) A palavra do
Senhor não está presa nem mesmo quando os ministros de Deus estão presos, 2
Timóteo 2.9. Mesmo quando Paulo estava preso, o Evangelho tinha um livre curso.
Quando João foi banido para a Ilha de Patmos, Cristo foi visitá-lo ali. E não é
só isso: os servos sofredores de Deus são, geralmente, tratados como favoritos,
e a sua consolação abunda quando a sua aflição também abunda, 2 Coríntios 1.5.
III
A descoberta de que Deus estava feliz por se revelar ao profeta quando estava
nessas circunstâncias, e de estar ao seu lado quando fosse se comunicar com o
seu povo. Aqui ele nos conta o que viu, que ouviu, e que sentiu. 1. Ele viu
visões de Deus, v.1. Nenhum homem pode ver Deus e viver, mas muitos têm visto
visões de Deus, exemplos da glória divina que lhes trouxeram instruções e que os
influenciaram. Geralmente, quando Deus se revela primeiramente a qualquer
profeta, Ele o faz através de uma extraordinária visão, como aconteceu com
Isaías (Ez 6), com Jeremias (Ez 1.) e com Abraão (At 7.2), a fim de estabelecer
uma correspondência e uma forma satisfatória de relacionamento. Deste modo, não
haverá mais a necessidade de acontecer outra visão posterior para trazer alguma
revelação. Ezequiel foi escolhido para dirigir o coração do povo ao Senhor seu
Deus. Portanto, ele mesmo deveria ver a visão de Deus. Note que é importante que
aqueles cuja missão é levar os outros ao conhecimento e ao amor de Deus estejam
bem familiarizados com Ele e muito influenciados por tudo o que souberem a seu
respeito. Para que Ezequiel pudesse ter uma visão de Deus, os céus foram
abertos, a escuridão e a distância que prejudicavam essa visão foram vencidas, e
ele foi levado a penetrar na luz das glórias do mundo superior de uma forma tão
próxima e tão clara como se os céus tivessem se aberto para ele. 2. Ele ouviu a
voz de Deus (v.3). A voz do Senhor lhe foi expressamente dirigida, e aquilo que
viu tinha o propósito de prepará-lo para o que iria ouvir depois. A expressão é
enfática: Essendo fuit verbum Dei – a palavra do Senhor lhe estava sendo
realmente dirigida. Não havia nenhum erro, ela chegou até ele na plenitude da
sua luz e poder, numa evidente demonstração do Espírito. Ela veio para perto
dele, e também penetrou nele, tomou posse dele e magnificamente residiu nele.
Ela veio expressamente, ou precisamente, até ele. Ezequiel entendeu claramente o
que havia sido dito, e ficou extremamente satisfeito com a sua veracidade. A
Palavra essencial (assim podemos entender), a Palavra Daquele que é o próprio
Verbo veio a Ezequiel, para enviá-lo na sua missão. 3. Ele sentiu o poder de
Deus abrindo os seus olhos para ver as visões, abrindo os seus ouvidos para
ouvir a voz, e abrindo o seu coração para receber a ambos. A mão do Senhor
estava sobre ele. Note que a mão do Senhor acompanha a palavra do Senhor, e
assim ela se torna válida. As pessoas somente acreditam e entendem o relato de
quem recebeu a revelação do braço do Senhor. A mão de Deus estava sobre ele,
assim como estava sobre Moisés, para cobri-lo, a fim de que não ficasse ofuscado
pela luz brilhante e pelo esplendor das visões que viu, Êxodo 33.22. Essa luz
estava sobre ele (como estava sobre João, Apocalipse 1.17) para fazer com que
ele revivesse, e para apoiá-lo, para que ele pudesse suportar e não desfalecer
perante estas descobertas, para que não ficasse nem exaltado, nem deprimido
devido à abundância das revelações. A graça de Deus era suficiente para Ezequiel
e como prova disso, a mão de Deus estava sobre ele.
A Visão dos Quatro Seres Viventes
Ezequiel 1. 4-14
As visões de Deus, vistas por Ezequiel, eram muito gloriosas e tinham mais
detalhes do que as visões vistas por outros profetas. Essas visões tinham o
seguinte escopo e intenção: 1. Trazer à mente do profeta pensamentos muito
grandes, elevados e dignos a respeito daquele Deus de quem Ezequiel havia
recebido a missão, e por quem havia sido escolhido. Ele tinha visto a semelhança
da glória de Deus (v. 28). Conseqüentemente, Ezequiel podia pressupor que fosse
uma honra servir ao Senhor, pois Ele é servido pelos anjos. O profeta poderá
servi-lo com segurança, pois Ele tem poder suficiente para apoiá-lo no seu
trabalho. Ele estaria correndo um grande risco caso se retirasse do seu serviço,
pois o Senhor tem poder suficiente para persegui-lo, como fez com Jonas. Um Deus
tão grande como este deve ser servido com reverência e santo temor. Além disso,
Ezequiel podia prever com segurança aquilo que esse Deus iria fazer, pois Ele é
capaz de cumprir a sua palavra. 2. Infligir terror nos pecadores que
permaneceram em Sião, e também naqueles que já estavam na Babilônia, que se
sentiam seguros e desafiavam as ameaças sobre a ruína de Jerusalém, como
encontramos na profecia de Jeremias, e também, nas de tantos outros, nas
seguintes palavras: “Que saibam todos aqueles que disseram ‘Vamos ter paz, mesmo
com a nossa decisão de continuar’, que o nosso Deus é um fogo consumidor perante
o qual não podemos oferecer resistência”. Parece-nos claro que no capítulo 43.3
essa visão fazia uma referência à destruição de Jerusalém, onde o profeta diz
que ela tinha o aspecto da visão que ele havia visto quando veio para destruir a
cidade, isto é, ela era a profecia dessa destruição. 3. Dizer palavras de
consolo àqueles que temiam a Deus e tremiam perante as suas palavras e se
humilhavam sob a sua mão poderosa. “Que eles saibam que, embora sejam cativos na
Babilônia, ainda têm Deus intimamente dentro de si mesmos. Embora não tenham o
lugar do santuário para ser o seu glorioso trono, eles têm o Deus do santuário”.
O Dr. Lightfoot observa: “Agora que a Igreja deverá ser implantada durante muito
tempo em outro país, o Senhor está mostrando a sua glória no meio deles, da
mesma maneira como havia feito anteriormente quando primeiramente constituíram a
sua Igreja no meio do deserto. E também a partir de uma nuvem de fogo, como
havia feito antes, Deus mostrou-se no meio dos seres viventes e entre os
querubins, e ali proferiu os seus oráculos”. Isso trouxe uma honra ao seu povo,
com a qual eles poderiam ser respeitados quando fossem insultados pelos caldeus,
e também aumentaria as suas esperanças de que seriam libertados no devido tempo.
Agora, respondendo a esses propósitos temos nesses versos a primeira parte da
visão que representa Deus sendo atendido e servido por uma incalculável
quantidade de anjos que são os seus mensageiros e ministros, aqueles que cumprem
as suas ordens e ouvem atentamente a sua palavra. Isso revela a sua grandeza,
utilizando a figura de um príncipe terreno que tem um esplêndido séqüito e
numerosos exércitos sob seu comando, que atrai a confiança dos seus aliados e
leva os seus inimigos a temê-lo.
I
A introdução a essa visão dos anjos é grandiosa e estimulante, v. 4. O profeta,
ao observar os céus se abrirem, olhou e procurou (porque era chegado o tempo)
ver que novas revelações Deus conceder-lhe-ia. Note que quando os céus se abrem
precisamos manter os olhos abertos. Observe que para abrir caminho, um vendaval
veio do norte a fim de dissipar as névoas que encobriam essa região mais baixa.
O bom tempo vem do norte. Portanto é de lá que vem o vento que afasta a chuva.
Deus pode, através de um vendaval limpar o céu e o ar, e produzir a serenidade
da mente que é necessária à nossa comunhão com o Céu. No entanto, esse vendaval
é acompanhado por uma grande nuvem. Quando pensamos que as nuvens que se
levantaram dessa terra já foram dispersas e podemos ver além delas, ainda assim
resta uma nuvem onde as coisas celestiais ficaram envolvidas, uma nuvem que vem
de cima, que nos impede de ordenar as nossas palavras a esse respeito por causa
da escuridão. Nesta visão, Cristo desceu à terra da mesma maneira que ascendeu
ao céu: numa nuvem. Alguns, através desse vendaval e das nuvens, perceberam que
o exército dos caldeus estava vindo do norte contra a terra de Judá, e que iria
cair sobre eles como se fosse uma tempestade. E isso está de acordo com o que
foi representado em uma das primeiras visões de Jeremias (Jr 1.14, “Do norte se
descobrirá o mal sobre todos os habitantes da terra”). Mas eu entendo que aqui
essas palavras representam mais propriamente uma introdução à visão do que aos
sermões. Esse vendaval veio para Ezequiel (assim como para Elias em 1 Reis
19.11) a fim de preparar o caminho do Senhor e exigir atenção. Aquele que tem
olhos veja. E aquele que tem ouvidos ouça.
II
A visão em si. Uma grande nuvem era o veiculo usado pela visão transmitida ao
profeta. Pois o pavilhão no qual ele repousa e o carro que dirige, são as trevas
e as densas nuvens, Salmos 18.11; 104.3. É dessa forma que, ao nos encobrir com
uma nuvem, Deus está escondendo a face do seu trono, para que a sua luz
maravilhosa e extremamente resplandecente não nos domine. Agora:
1. A nuvem estava acompanhada por um fogo, da mesma maneira como aconteceu no
Monte Sinai, onde Deus habitava em uma nuvem espessa, e a visão da sua glória
era como um fogo consumidor (Êx 24.16,17). A sua primeira aparição a Moisés foi
numa chama de fogo que nascia de um arbusto, pois o nosso Deus é um fogo
consumidor. Esse era um fogo que o envolvia, um globo ou um corpo celeste, ou
ainda uma roda de fogo. Deus é em Si mesmo, a Sua própria causa e o seu próprio
fim. Pois Ele mesmo é aquele fogo que o envolve, ou (como entendem alguns) um
fogo aceso por Si mesmo. O fogo da glória de Deus brilha, mas também o envolve,
pois a Sua vontade é que vejamos apenas uma parte da sua condição divina. O fogo
da ira de Deus irradia-se, mas também o envolve, pois a paciência divina sofre
mesmo que toda a sua ira não tenha sido provocada. Se este fogo não limitasse a
si mesmo, Oh! Senhor, quem poderia suportá-lo?
2. Esse fogo está cercado por uma glória. Nela havia um resplendor no qual Ele
se envolvia, mas também revelava algo a seu próprio respeito. Embora não
possamos ver dentro do fogo, ou procurar e descobrir a perfeição de Deus, ainda
assim podemos ver o brilho que o cerca, e o reflexo desse fogo numa densa nuvem.
Moisés conseguia enxergar parcialmente as costas de Deus, mas não o seu rosto.
Temos algum entendimento em relação à natureza de Deus através do brilho que a
cerca, embora não possamos vê-la por causa da nuvem que se espalhou sobre ela.
Nada é mais fácil do que afirmar o que Deus é. Porém nada é mais difícil do que
descrever em detalhes aquilo que Ele é. Mesmo quando Deus revela a sua ira sob a
forma de fogo, ao redor dela existe um brilho. Pois a santidade e a justiça
divinas aparecem distintamente no castigo do pecado e dos pecadores. Até mesmo
ao redor do fogo devorador existe o brilho que os santos glorificados irão
sempre admirar.
3. No meio desse fogo alguma coisa brilhava com a cor do âmbar. Não ficamos
sabendo quem ou o que teria essa cor de âmbar. Portanto, entendo que Ezequiel
tenha visto a estrutura da visão seguinte no meio do fogo e do seu brilho. E a
primeira coisa que ele percebeu antes de observar os seus detalhes, era que
tinha a cor do âmbar, isto é, tinha a aparência do âmbar em sua visão, uma cor
flamejante e ardente, a cor do carvão em brasa, e é assim que alguns pensam que
o texto deva ser entendido. Os seres viventes que ele viu saindo do meio do fogo
eram serafins – seres abrasadores, pois Deus faz dos seus anjos, espíritos, e
dos seus ministros, um fogo consumidor.
4. Aquilo que saiu do fogo, e que tinha uma ardente cor de âmbar, ao ser
distintamente observado tinha a aparência de quatro criaturas vivas. Não eram os
próprios seres viventes (anjos são espíritos e não podem ser vistos), mas tinham
a sua aparência, assim como se fossem um hieróglifo ou uma representação, que
Deus julgou ser mais apropriada usar para guiar o profeta, e também a nós junto
com ele, a algum conhecimento do mundo dos anjos (um assunto que é puramente
dependente da revelação divina). Esta é a visão que devemos ter com um forte
senso de respeito pela grandeza desse Deus que tem anjos como seus ajudantes, e
da bondade desse Deus que nomeou esses anjos como ajudantes do seu povo. O fato
dessas criaturas que saíram do meio do fogo se parecerem com anjos é que elas
devem a Deus a sua existência e o seu poder. Elas são, em si mesmas, e também
para nós, aquilo que lhe agradou fazer. A glória delas representa um raio da
glória de Deus. O próprio profeta explica essa visão (Ez 10.20). Eu sabia que os
seres vivos eram querubins, que é um dos nomes pelos quais os anjos são
conhecidos nas Escrituras. Daniel recebeu o poder de conhecer o seu número: eles
eram milhões de milhões, Daniel 7.10. Porém, embora fossem muitos, ainda assim
eles são apenas um, e isso foi mostrado a Ezequiel. Eles eram apenas um quanto à
sua natureza e operação, como se fosse um exército constituído por milhares de
soldados, mas que, no entanto, é chamado de um corpo de homens. Temos aqui um
relato sobre:
(1) A sua natureza. Elas são criaturas vivas, são as criaturas de Deus, obra das
suas mãos. O seu ser tem uma origem divina. Elas não têm vida em si mesmas, mas
recebem essa vida Daquele que é a fonte da vida. Assim como as criaturas vivas
desse mundo inferior são superiores aos vegetais que são os ornamentos da terra,
também os anjos são superiores ao sol, à lua e às estrelas, que são os
ornamentos do céu. O sol (dizem alguns) é uma chama de fogo envolvida em si, mas
ele não é uma criatura viva como os anjos que têm chamas de fogo. Os anjos são
criaturas vivas, são seres vivos, enfaticamente vivos. Os homens da terra são
criaturas mortais. Eles morrem diariamente (no meio da vida entramos na morte),
mas os anjos do céu são criaturas vivas. Eles realmente vivem, vivem para um bom
propósito e, quando os santos se tornarem iguais aos anjos eles não morrerão
mais, Lucas 20.36.
(2) O seu número. Eles eram quatro. Foi assim que apareceram aqui, embora fossem
incontáveis. Não é que esses quatro anjos em particular estivessem acima dos
demais, como alguns carinhosamente imaginaram Miguel, Gabriel, Rafael e Uriel,
mas foi por causa das quatro faces que colocaram e porque anunciaram que haviam
sido enviados em direção aos quatro ventos do céu, Mateus 24.31. Zacarias viu
esses anjos como se fossem quatro carros indo para o oriente e para o ocidente,
para o norte e para o sul, Zacarias 6.1. Deus tem mensageiros para enviar a
todos os cantos, pois o seu reino é universal e alcança todas as partes do
mundo.
(3) As suas qualificações, pelas quais esses anjos foram admitidos ao serviço do
seu Criador e Senhor. Elas são apresentadas simbolicamente e também de acordo
com a sua semelhança, como é próprio das visões que são como parábolas para os
olhos. A maneira como a sua descrição foi feita aqui e a forma como foi
expressa, me fazem crer que não seja possível formar uma idéia exata desses
anjos na nossa imaginação, ou mesmo com o uso de um lápis, pois isso nos levaria
à tentação de adorá-los. No entanto, em diversas partes dessa descrição podemos
perceber os diversos exemplos da sua aptidão para o trabalho para o qual foram
empregados. Note que é a maior honra para as criaturas de Deus estarem
capacitadas a corresponder à finalidade da sua criação. E quanto mais
predispostos estivermos para praticar as boas obras, mais próximos estaremos da
dignidade dos anjos. Essas criaturas vivas foram descritas aqui: [1] De acordo
com a sua aparência geral: Elas se assemelhavam ao homem, pois essa aparência
tinha principalmente a forma humana. Em primeiro lugar, esta característica
serve para significar que essas criaturas vivas são seres racionais, seres
inteligentes, que têm o espírito do homem, que é a medida padrão do Senhor. Em
segundo lugar, para honrar a natureza do homem, que foi feito inferior, um pouco
inferior aos anjos segundo a classificação dos seres que se colocam abaixo
deles. Quando as inteligências invisíveis do mundo superior se fazem visíveis,
elas o fazem através da semelhança com o homem. Em terceiro lugar, para anunciar
que o seu contentamento está com os filhos dos homens, como ocorre com o seu
Senhor (Pv 8.31). Eles estão a serviço dos homens, e os homens estão
espiritualmente ligados a esses anjos através da fé, da esperança e do santo
amor. Em quarto lugar, os anjos de Deus têm a aparência de homens porque, na
plenitude do seu tempo, o Filho de Deus iria aparecer não só com a aparência
humana, mas também para assumir a sua natureza. Portanto, esses anjos mostram o
seu amor pela natureza humana. [2] Pelas suas faces. Cada um desses anjos tinha
quatro faces. Na visão do apóstolo João, que tem certa afinidade com a visão de
Ezequiel, cada uma das quatro criaturas vivas tinha uma das faces aqui
mencionadas (Ap 4.7). Nessa visão, cada criatura viva tem quatro faces a fim de
anunciar que todas elas possuem as mesmas qualificações para o serviço, embora,
como talvez aconteça entre os anjos do céu e também entre os anjos das igrejas,
algumas se sobressaiam por terem certo dom natural, e outras por terem um dom
diferente. Mas todas estão aplicadas no mesmo serviço. Vamos contemplar as suas
faces até, em certa medida, nos transformarmos na mesma imagem para podermos
fazer a vontade de Deus, da mesma maneira com fazem os anjos do céu. Todos eles
tinham quatro faces humanas (pois esta era a sua aparência, v.5). Mas, além
disso, eles tinham a face de um leão, de um boi e de uma águia, cada uma delas
magistralmente perfeita. O leão entre os animais selvagens, o boi entre os
animais domésticos e a águia entre as aves, v. 10. Será que Deus utiliza-se
deles para aplicar os seus castigos sobre os inimigos? Esses anjos são ferozes e
fortes como o leão e a águia ao destruírem as suas presas. Será que Deus
utiliza-se deles para o bem do seu povo? Eles são fortes como os bois para o
trabalho, e têm a inclinação para servir. E nessas duas qualidades eles têm o
entendimento de um homem. As perfeições distribuídas entre os seres viventes na
terra são encontradas nos anjos do céu. Eles têm a aparência de um homem, mas
como existem certas coisas nas quais o homem é superado até mesmo pelas
criaturas inferiores, esses anjos são, portanto, comparados a elas. Os anjos têm
o entendimento do homem, e nisso eles o superam. No entanto, também se
assemelham a ele na ternura e no senso de humanidade. Mas em primeiro lugar, o
leão é superior ao homem na força e na coragem, e nisso ele é muito mais
formidável. Portanto, os anjos, que nesta característica assemelham-se ao leão,
usam a sua face. Em segundo lugar, um boi supera o homem em diligência,
paciência, assiduidade e numa incansável disposição para o trabalho que precisa
fazer. Portanto, os anjos, que estão constantemente a serviço de Deus e da
igreja, usam a face de um boi. Em terceiro lugar, a águia supera o homem na
rapidez, na sua penetrante visão e no seu vôo a grandes altitudes. Portanto, os
anjos, que vêm as coisas do alto e enxergam profundamente o interior dos
mistérios divinos, usam a face de uma águia. [3] Pelas suas asas. Cada um desses
anjos tinha quatro asas, v.6. Na visão de Isaias, os anjos exibiam seis asas.
Agora eles aparecem com quatro, estão sobre o trono, e dois cobriam as suas
faces com as asas. Eles receberam asas para estarem em condições de voar
rapidamente nas missões recebidas de Deus, sem perderem tempo para executar
qualquer encargo que lhes tenha sido designado. A fé e a esperança representam
as asas dos anjos, com as quais voam nas alturas. A piedade e as devotas
afeições representam as asas através das quais são levados com energia e
espontaneidade. Em relação a essas asas, o profeta observa primeiro que estão
unidas umas às outras (vv. 9,11), e que estes seres não fazem uso delas para
lutar, como fazem alguns pássaros, pois não existem combates entre os anjos.
Deus é a fonte da paz, da paz perfeita nos lugares elevados. Mas essas asas
estão unidas, simbolizando a sua perfeita unidade e unanimidade, e também o
perfeito entendimento que existe entre os anjos. Em segundo lugar, essas asas
foram esticadas para cima, foram estendidas e estão prontas para uso. Elas não
estão dobradas nem caídas. Se um anjo receber a menor insinuação da vontade
divina, ele não precisa procurar nada. Ele imediatamente abre as asas. Porém as
nossas pobres almas, nesta situação são como a ostra que com muita dificuldade
consegue se levantar. Em terceiro lugar, duas das suas asas foram usadas para
cobrir o seu corpo, o corpo espiritual que receberam. As roupas que nos cobrem
representam um empecilho para o trabalho. Porém os anjos não precisam de nenhuma
cobertura além das suas próprias asas, que lhes servem como apoio. Eles escondem
o seu corpo de nós, para evitar que façamos perguntas inúteis a seu respeito.
Não pergunte sobre eles, pois são maravilhosos, Juízes 13.18. Eles se cobrem
perante Deus para nos ensinar que quando nos aproximarmos dele deveremos estar
cobertos com a virtude de Cristo, para que a vergonha da nossa nudez não
apareça. [4] Pelos seus pés, incluindo as suas pernas e coxas. E os seus pés
eram direitos (v. 7). Eles se mantinham de pé, firmes e imóveis. Nenhum peso do
trabalho poderia fazer com que as suas pernas se curvassem. A esposa faz essa
descrição do seu amado. As suas pernas eram como colunas de mármore fundadas
sobre bases de ouro puro (Ct 5.15), e assim eram as pernas dos anjos. As plantas
dos seus pés eram como as de uma bezerra que tem o casco dividido e, portanto,
estão limpas. É como se fossem as plantas de um pé redondo (como diriam os
caldeus), que estariam prontas para se movimentar em qualquer direção. Seus pés
eram alados (conforme a Septuaginta), e caminhavam tão rapidamente que pareciam
estar voando. E seus próprios pés brilhavam com a cor do cobre polido. São
maravilhosas não apenas as faces, mas também os pés daqueles que Deus envia em
suas missões (Isaías 52.7). E cada passo dado pelos anjos é glorioso. Na visão
que João teve de Cristo, ele disse que seus pés são semelhantes a latão
reluzente, como se tivessem sido refinados numa fornalha, Apocalipse 1.15. [5]
Pelas suas mãos (v. 8). Eles tinham mãos de homem debaixo das suas asas, nos
seus quatro lados, um braço e uma mão sob cada asa. Muitos podem ser rápidos,
mas não são ativos. Estes correm muito, mas nada fazem de útil, nada trazem de
permanente, têm asas mas não têm mãos. Porém os servos de Deus, os anjos, não só
vão para onde Deus os manda, como se apresentam quando são chamados e fazem tudo
que lhes é ordenado. Eles são como as mãos do homem, maravilhosamente feitas e
apropriadas ao serviço, são guiadas pela razão e pelo entendimento, pois aquilo
que os anjos fazem é feito com inteligência e critério. Eles têm pés de
novilhos. Isso revela a rapidez dos seus movimentos (foi dito que os cedros do
Líbano saltam como um unicórnio, Salmos 29.6). Porém eles têm mãos de homem, o
que revela a beleza e a perfeição das suas performances, assim como foi dito que
o céu é obra dos dedos de Deus. As suas mãos estavam sob as suas asas, que as
escondiam da mesma forma que também escondiam o restante do seu corpo. Note que
a função dos anjos é mantida em sigilo e o seu trabalho é executado de forma
invisível. Ao trabalharmos para Deus, não devemos fazer como os preguiçosos, que
escondem as mãos no seio. Devemos trabalhar como os humildes, sem deixar que a
mão esquerda saiba o que a mão direita está fazendo. Podemos observar que as
mãos estavam sob as asas, onde quer que estas estivessem. Para onde essas asas
levassem os anjos, as suas mãos também seriam levadas, para que pudessem fazer
aquilo que fosse apropriado, aquilo que o dever estivesse exigindo que fizessem
neste lugar.
(4) Pelos seus movimentos. As criaturas vivas estavam se movimentando. Os anjos
são seres ativos. Não faz parte da sua felicidade ficarem sentados e imóveis sem
fazer nada, mas desejam estar sempre trabalhando em alguma tarefa. Devemos
considerar que estamos em uma situação melhor quando fazemos alguma coisa boa,
quando estamos trabalhando como os anjos, ou como aqueles que estão sendo
observados aqui: [1] Em qualquer serviço que precisassem fazer, cada um deles
caminhava à frente (vv. 9,12) querendo dizer, em primeiro lugar, que estavam
sinceramente dedicados à glória de Deus e que em tudo o que faziam visava essa
glória. Este era o seu único objetivo. O fato de caminharem à frente dá a
entender que olhavam sempre à frente e nunca tinham qualquer intenção sinistra
naquilo que faziam. Assim, se o nosso olhar for santo, todo o nosso corpo terá
luz. A simplicidade do olhar representa a sinceridade do coração. Em segundo
lugar, eles estavam muito preocupados com o serviço para o qual haviam sido
designados, e desempenhavam esse serviço com toda a atenção possível. Eles
prosseguiam em seu trabalho, pois faziam com toda dedicação, e sem demora, tudo
aquilo que as suas mãos encontravam para fazer. Em terceiro lugar, eles eram
unânimes nesse serviço, caminhavam diretamente à frente, cada um cuidando do seu
trabalho. Eles não se opunham nem se chocavam uns contra os outros, não se
colocavam à frente da luz dos outros, nem obstruíam o caminho dos outros. Em
quarto lugar, eles entendiam perfeitamente a sua missão, e foram minuciosamente
informados sobre ela, de modo que não precisavam ficar imóveis, pausar ou
hesitar, mas continuavam prontamente com seu trabalho como fazem aqueles que
sabem o que têm a fazer, e como devem fazê-lo. Em quinto lugar, eles eram firmes
e constantes no seu trabalho. Não oscilavam, não se entediavam, não variavam, e
eram como um exemplo em si mesmos. Eles se moviam numa linha reta. Essa era a
maneira mais adequada de trabalhar em tudo o que faziam e não perdiam tempo. [2]
Eles não se viravam ao caminhar à frente, vv. 9,12. Em primeiro lugar, eles não
tropeçavam ou cometiam erros, o que lhes daria a oportunidade de voltar para se
corrigir. Mas o seu trabalho não precisava de nenhuma correção. Portanto, não
precisavam fazê-lo novamente. Em segundo lugar, eles não se distraíam, não se
voltavam, nem viravam de lado para gastar tempo com qualquer coisa que fosse
estranha à sua missão. [3] Eles foram para onde o Espírito haveria de ir (v.
12). Em primeiro lugar, eles iam para onde o seu próprio espírito estava
disposto a ir, não tendo nenhum corpo como nós temos, para interferir ou
impedir. A nossa infelicidade e o nosso ônus diário é que, mesmo o espírito
estando disposto, a carne é fraca e não pode acompanhá-lo, de modo que não
fazemos o bem que poderíamos fazer. Mas os anjos e os santos glorificados não
trabalham sob tal limitação. Nada os impedirá em relação a qualquer coisa a que
se inclinem, ou que tenham a intenção de fazer. Em segundo lugar, eles iriam
para qualquer lugar que o Espírito decidisse enviá-los. Embora tivessem tanta
sabedoria em si mesmos, ainda assim em todos os seus atos e movimentos eles se
sujeitavam à orientação e às leis da vontade divina. Para onde a divina
Providência desejasse ir, eles iriam a fim de servirem aos seus propósitos,
obedecendo as suas ordens. O Espírito de Deus (diz o Sr. Greenhill) é o grande
agente que coloca os anjos para trabalhar, e para eles é uma honra serem assim
levados (e tão facilmente levados) pelo Espírito. Veja como são afáveis e gentis
essas nobres criaturas. Para onde o Espírito vai, elas irão imediatamente, com
toda diligência possível. Observe que aqueles que caminham ao lado do Espírito
estão fazendo a vontade de Deus da mesma forma que os anjos. [4] Eles correram e
retornaram como um relâmpago, v. 14. Isso anuncia que, primeiro, eles se
apressaram, eram rápidos nos seus movimentos, tão rápidos quanto a luz. Eles
executavam imediatamente qualquer serviço que precisassem fazer, em um momento,
em um piscar de olhos. Felizes são aqueles que não têm um corpo humano para
retardar seus movimentos nos exercícios santos. E felizes seremos quando
tivermos um corpo espiritual para executar um trabalho espiritual. Satanás cai
como um relâmpago sobre a sua própria ruína, Lucas 10.18. Os anjos voam como
relâmpagos para fazer a obra do Senhor. O anjo Gabriel voou rapidamente. Em
segundo lugar, eles voltaram rapidamente, correram e retornaram, correram para
fazer o seu trabalho e obedecer as suas ordens, e depois retornaram para relatar
o que haviam feito e receber novas instruções, para assim continuarem sempre
ocupados. Eles correram para o mundo inferior para fazer aquilo que precisava
ser feito ali, mas, quando terminaram, retornaram como um relâmpago para o mundo
superior, para estarem na santa presença do seu Deus, de onde não desejavam se
ausentar, exceto pelo tempo que o seu serviço exigia. É assim que nós devemos
ser nos negócios desse mundo. Não devemos nos sentir confortáveis aqui. Embora
possamos correr para realizar as nossas tarefas e resolver os nossos assuntos,
não devemos descansar neles e a nossa alma deve retornar rapidamente como um
relâmpago para Deus, que é o seu repouso e o centro da sua existência.
5. Temos aqui um relato sobre a luz pela qual o profeta viu essas criaturas
vivas, ou o espelho através do qual elas foram vistas, v. 13: (1) Ele as viu
através da luz que elas mesmas possuíam, pois a sua aparência era como brasas de
fogo. Eram serafins, e esta característica mostrava o ardor do seu amor para com
Deus, o ardente zelo pelo serviço divino, o seu brilho e esplendor, e também o
seu terror contra os inimigos de Deus. Quando os anjos são empregados por Deus
para pelejar as suas pelejas, eles são como brasas de fogo (Sl 18.12) que
devoram os adversários e como relâmpagos lançados para desbaratá-los. (2) Ele
viu essas criaturas vivas através da luz de algumas lâmpadas que subiam e
desciam entre elas, cujo brilho era muito intenso. As obras de Satanás são obras
das trevas. Ele é o príncipe das trevas desse mundo. Mas os anjos de luz estão
na claridade e embora escondam o seu trabalho, este se torna visível porque nos
traz a luz. Mas nós vemos esses anjos e as suas obras apenas através da luz de
uma vela, somente através dessa luz tênue que sobe e desce entre eles. Quando o
dia amanhecer e as sombras da noite desaparecerem, poderemos ver essas criaturas
claramente. Algumas adquirem a aparência de carvões em brasa, e da luz que emana
do fogo, significando que a ira de Deus e seus castigos seriam agora lançados
sobre Judá e Jerusalém, por causa dos pecados que praticaram, e para isso Ele
havia empregado os anjos. Como uma afirmação disso, encontramos, mais tarde,
carvões em brasa espalhados sobre a cidade a fim de consumi-la pelo fogo, e
estes haviam sido colhidos entre os querubins, Ez 10.2. Então, com a aparição
das lâmpadas, podemos entender a luz do consolo que brilhou para o povo de Deus
durante aquele infortúnio. O ministério dos anjos é como um fogo consumidor para
os inimigos de Deus, mas também é como uma luz de alegria para seus próprios
filhos. Para os filhos, esse fogo é brilhante e traz avivamento e renovação.
Porém, para os inimigos, dele surge um relâmpago que irá destruí-los. Note que
assim como Deus, os bons anjos podem ser nossos amigos ou inimigos.
A Visão das Rodas
Ezequiel 1. 15-25
O profeta foi muito preciso ao fazer e registrar as suas observações a respeito
dessas visões. Temos aqui:
I
O aviso que recebeu das rodas, vv. 15-21. A glória de Deus transparece não só no
esplendor do seu séqüito no mundo superior, mas na firmeza do seu governo aqui
no mundo inferior. Tendo visto como Deus age de acordo com a sua vontade nos
exércitos do céu, vamos ver agora como Ele age em relação aos habitantes da
terra, pois o profeta viu que as rodas estavam na terra, v. 15. Enquanto
observava as criaturas vivas, contemplava a glória dessa visão e dela recebia
instruções, essa outra visão apresentou-se a Ezequiel. Note que aqueles que
fazem bom uso das descobertas com as quais foram favorecidos por Deus podem
esperar fazer novas descobertas. Pois, para Ele, aquele que tem receberá ainda
mais. Às vezes somos tentados a pensar que não existe nada glorioso a não ser
aquilo que está no mundo superior, embora com uma única visão de fé poderíamos
discernir a beleza da Providência e da sabedoria, do poder e da bondade, que
brilham na administração desse reino. Assim poderemos ver e dizer:
“Verdadeiramente, Ele é o Deus que julga a terra e age como deve agir, sim, como
Deus”. Existem muitas coisas nessa visão que nos fornecem algum entendimento
sobre a Providência divina. 1. As disposições da Providência são comparadas às
rodas. Elas podem ser as rodas de uma biga que o conquistador dirige em triunfo,
ou as rodas de um relógio onde todas contribuem para regular o movimento da
máquina. Conhecemos o curso ou a roda da natureza (Tg 3.6), que foi aqui
colocado perante nós sob a direção do Deus da natureza. Embora as rodas não se
movam sozinhas, como os seres viventes, elas podem ser acionadas e mantidas
quase que continuamente em movimento. A Providência, representada por essas
rodas, produz mudanças; às vezes alguém fala que a roda é mais importante, às
vezes não, mas o seu movimento em torno de um eixo, como aquele da órbita
terrestre, é muito regular e constante. O movimento da roda é circular e pelas
revoluções da Providência, as coisas são levadas a ter a mesma postura e
condição que tinham anteriormente. Pois aquilo que é, é o mesmo que foi, e não
há nada de novo sob o sol, Eclesiastes 1.9,10. 2. Diz-se que as rodas movem-se
por causa das criaturas vivas que cuidam delas para direcionar o seu movimento,
pois os anjos foram empregados como ministros da Providência de Deus, e eles
desempenham um papel muito mais importante na direção do movimento das rodas que
servem ao propósito divino do que podemos acreditar. Existe uma conexão tão
íntima entre as criaturas vivas e as rodas que elas se movem e repousam juntas.
Será que os anjos foram tão diligentemente empregados? Geralmente os homens são
diligentemente empregados como instrumentos nas mãos de Deus, seja por
misericórdia ou castigo, embora eles mesmos não tenham consciência disso. Ou,
será que os homens têm voz ativa no planejamento dos seus desígnios? Os anjos
estão agindo ao mesmo tempo para controlá-los e dominá-los. E isso recebeu uma
grande ênfase aqui (v. 19). Quando as criaturas vivas partiram para cumprir
qualquer missão, as rodas foram com elas. Quando Deus tem algum trabalho a ser
feito pelo ministério dos anjos, as rodas são encontradas ou feitas, e estão
prontas para cooperar. E (v.21) quando as criaturas paravam, elas paravam
também. Quando os anjos haviam terminado o seu trabalho, as rodas haviam
terminado o seu. Se as criaturas vivas eram erguidas da terra para executar
algum serviço que estivesse acima do curso comum da natureza e fora da ordem
habitual das coisas (como supomos que aconteça na realização dos milagres, na
divisão das águas, ou na imobilização do sol) as rodas, ao contrário da sua
tendência natural que é se voltarem em direção à terra, movem-se em conjunto com
elas e são levantadas diante delas. Isso foi mencionado três vezes, vv. 19-21.
Note que todas as criaturas inferiores são, movem-se e agem da maneira como o
Criador dirige e interfere através do ministério dos anjos. Os efeitos visíveis
são administrados e governados pelas rodas, e a razão dada para isso é que o
espírito das criaturas vivas estava nas rodas. A mesma sabedoria, o mesmo poder
e a santidade de Deus, a sua mesma vontade e o seu conselho guiam e governam os
anjos e todas as suas performances. Através deles, Deus ordena e dispõe todos os
movimentos das criaturas desse mundo inferior, e também os acontecimentos e seus
motivos. Deus é a alma do mundo e anima todo esse conjunto, tanto o que está em
cima como aquilo que está em baixo, para que possa se movimentar em perfeita
harmonia, assim como fazem as partes superiores e inferiores do corpo natural,
de modo que para onde quer que o Espírito vá (qualquer coisa que Deus deseje ou
determine que seja realizada), para lá o espírito dos anjos deverá ir, isto é,
os anjos de forma consciente e proposital decidem obedecer e agir. E o seu
espírito está nas rodas que foram, portanto, erguidas perante eles. Isto quer
dizer que tanto os poderes da natureza como os desejos do homem foram todos
feitos para servir a esse propósito, que eles infalível e irresistivelmente
executaram, embora não tivessem essa intenção, nem pensassem assim, Isaías 10.7.
Miquéias 4.11,12. Dessa maneira, embora o preceito de Deus não seja praticado na
terra como é praticado no céu, o seu propósito e o seu conselho são e serão
praticados. 3. Diz-se que as rodas têm quatro faces (v. 15) mostrando que a
Providência de Deus aplica-se a todas as partes do mundo, norte, sul, leste e
oeste, e estende-se até as partes mais remotas da terra. Veja que lado da roda
da Providência você prefere. Ela terá uma face voltada para você, uma bela face,
na qual você poderá admirar as suas feições e a sua aparência. Ela está olhando
para você como se estivesse pronta para falar, como se fosse um quadro bem
desenhado, e tem um olhar dirigido para tudo que olha para ela. A roda tinha
então quatro faces, pois tinha uma face em cada um dos seus quatro lados, v. 17.
Ezequiel viu apenas uma roda (v. 15), uma esfera, mas depois viu que eram quatro
e todas as quatro tinham a aparência de uma única roda (v. 16). Elas eram não só
parecidas uma com a outra, mas era como se fossem apenas uma. Isso significa:
(1) Que um evento da Providência é semelhante a outro. Aquilo que nos acontece é
aquilo que é comum a todos os homens e não devemos pensar que isso seja
estranho. (2) Que vários acontecimentos têm a tendência de estar relacionados
com a mesma questão, e são encaminhados de forma a cooperarem para a realização
de um único propósito. 4. Acredita-se que a sua aparência e o seu trabalho
tenham a cor do berilo, turquesa (v.16), a cor de Társis (esta é a palavra),
isto é, a cor do mar. O berilo tem essa cor, que tende a um verde-marinho, ou um
“Azul Netuno” como a chamamos. A natureza das coisas desse mundo é como a do
mar, isto é, um fluxo contínuo, mas ainda assim existe uma constante coerência
na sucessão das suas partes. Existe uma cadeia de acontecimentos que estão
sempre arrastando uns aos outros. O mar vem e vai, e assim acontece com a
Providência nas suas determinações, mas as coisas sempre ocorrem em momentos e
medidas pré-estabelecidos. O mar parece azul, assim como a atmosfera, por causa
da deficiência e da debilidade da nossa visão, que só pode enxergar um pouco de
cada um deles. Portanto, a aparência e a obra da Providência foram adequadamente
comparadas a essa cor, porque não podemos descobrir a obra que Deus fez do
princípio ao fim, Eclesiastes 3.11. Vemos apenas algumas partes das orlas dos
seus caminhos (Jó 26.14), e tudo que está mais além nos parece azul, o que não
nos leva a entender nada mais a esse respeito. Pois, na verdade, não podemos
conhecer aquilo que está muito acima da nossa visão. 5. A sua aparência e a sua
obra estão, da mesma maneira, no meio de uma roda. Observe novamente aqui:
quando apareceram para o profeta, elas tinham a função de mostrar qual era
realmente o seu trabalho. A aparência dos homens freqüentemente difere do seu
trabalho. Se isso acontecer, a causa será a nossa ignorância ou os nossos erros.
Mas ambas eram como uma roda dentro de outra roda, uma roda menor movida por uma
roda maior. Não temos a intenção de fazer uma descrição matemática daquilo que o
profeta estava vendo. Mas o seu significado é que as disposições da Providência
nos parecem bastante intrincadas, perplexas e inexplicáveis. No entanto, elas
aparecem nas questões que foram sabiamente ordenadas para o melhor, para que
embora não saibamos, agora, o que Deus faz, ainda assim o saibamos depois, João
13.7. 6. O movimento dessas rodas, assim como o movimento dos seres vivos, era
firme, regular e constante. Elas não se viravam quando andavam (v. 17) porque
nunca erravam, nem agiriam de uma forma diferente do que deveriam. Deus, na sua
Providência, coloca o seu trabalho à sua frente, e depois faz com que caminhem
adiante. E esta obra continua avançando, mesmo quando nos parece que está
retrocedendo. Os seres viventes foram para onde o Espírito estava mandando.
Portanto, não retornaram mais. Nunca deveríamos ter ocasião de voltar e fazer
novamente aquilo de que nos arrependemos. Jamais devemos cometer os mesmos
erros, pois somos guiados pelo Espírito. Precisamos obedecer a sua orientação
para que sejamos vitoriosos. O Espírito de vida (alguns entendem estas palavras
desta forma) estava nas rodas. Ele as conduzia com facilidade e regularidade.
Por esta razão, elas não voltavam mais depois de terem partido. 7. Os anéis e os
aros das rodas eram tão altos que causavam medo, v. 18. Elas eram formadas por
grandes circunferências, de modo que, quando eram erguidas e movimentadas,
faziam com que o profeta ficasse com medo até de olhar para elas. Note que a
grande circunferência do pensamento divino e a vasta amplitude do seu desígnio
são realmente assustadoras. Quando nos propomos a descrever o círculo da
Providência ficamos paralisados de assombro, temendo que possamos ser até mesmo
consumidos por ela. Ó, a altura e a profundidade dos conselhos de Deus!
Deveríamos ficar aterrorizados ao considerá-los. 8. As rodas estavam repletas de
olhos, e esse detalhe da visão é o mais surpreendente de todos, e também o mais
significativo, pois revela claramente que os movimentos da Providência são todos
dirigidos pela sabedoria infinita. O fluxo das coisas não é determinado por um
destino cego, mas pelos objetivos e ordens do Senhor, que correm de um lado para
o outro em toda a terra, e estão em todos os lugares, contemplando o bem e o
mal. Observe que para nós, a certeza de que todas as coisas estão sob o
conhecimento e a direção do Deus que sabe todas as coisas e que está presente em
cada parte do universo, representa uma grande satisfação. E é isto que devemos
sentir, mesmo que não conheçamos as origens e as tendências dos acontecimentos.
II
O firmamento que Ezequiel contemplou, e que estava acima das cabeças dos seres
viventes. Quando viu estas criaturas vivas se movendo e as rodas se movendo ao
seu lado, ele levantou os olhos como costumamos fazer quando observamos os
vários movimentos da Providência nesse mundo inferior. Ao olhar para cima, ele
viu um firmamento estendido sobre as cabeças daqueles seres viventes, v. 22.
Aquilo que é feito na terra, está sendo feito sob o céu (como as Escrituras
mencionam freqüentemente), sob a sua inspeção e influência. Observe: 1. Aquilo
que o profeta viu. O firmamento tinha a cor de um terrível cristal. Ele era
realmente glorioso, mas, ao mesmo tempo, terrível. A sua imensidão e esplendor
deixaram o profeta maravilhado, e tomado por uma reverência mesclada com
assombro. O gelo terrível, com aspecto de vidro opaco (assim alguns entendem),
tinha a cor da neve congelada, como as montanhas de gelo dos mares do norte que
são muito assustadoras. Será que os pecadores teriam a coragem de perguntar:
Porventura Deus seria capaz de julgar em meio a uma nuvem escura? Jó 12.13. Mas
aquilo que entendemos ser uma nuvem escura, para Ele é algo transparente como o
cristal. Ele contempla todos os habitantes da terra a partir da sua habitação,
Salmos 33.14. O profeta viu que as asas das criaturas vivas estavam levantadas
sob o firmamento, v. 23. Elas usavam as asas para voar ou para se cobrir, de
acordo com o que fosse mais adequado para o momento. Deus está no alto, acima do
firmamento, e os anjos estão sob o firmamento. Isso revela a submissão destes
seres celestiais ao domínio de Deus, e a sua prontidão para voar nas missões que
recebem no firmamento aberto do céu, e para servi-lo unanimemente. 2. Aquilo que
o profeta ouviu. (1) Ele ouviu o ruído das asas dos anjos, v. 24. Abelhas e
outros insetos fazem um grande ruído devido à vibração das suas asas. Aqui os
anjos também fazem o mesmo para despertar a atenção do profeta para aquilo que
Deus estava prestes a lhe dizer, a partir do seu lugar no firmamento, v. 25. Os
anjos, através das providências para as quais são empregados, soam os alarmes de
Deus aos filhos dos homens e os incitam a ouvir a voz divina. Pois esta é a voz
que clama na cidade, e é ouvida e entendida pelos homens sábios. O ruído das
suas asas era alto e terrível como o ruído das grandes águas (como o rugido ou o
estrondo do mar) e era como o ruído de um exército, ou o ruído da guerra. Mas
era um som articulado e inteligível, não se assemelhando a um som incerto. Pois
ele representava o som da palavra, ou, mais ainda, era a voz do Todo-Poderoso,
pois Deus em sua Providência, fala uma vez e duas vezes, porém nem todos atentam
para isso, Jó 33.14. A voz do Senhor está clamando, Miquéias 6.9. (2) Ele ouviu
uma voz que vinha do firmamento, Daquele que está sentado no trono, v. 25.
Quando os anjos se moviam, eles faziam um ruído com as suas asas, mas se ao
fazer isso despertavam um mundo descuidado, eles ficavam imóveis e abaixavam as
suas asas para que houvesse um profundo silêncio, e a voz de Deus pudesse ser
distintamente ouvida. A voz da Providência tem o propósito de abrir os ouvidos
dos homens para a voz da palavra, para assumir a função do meirinho que com uma
voz alta exige silêncio quando o juiz profere a sentença. Aquele que tem ouvidos
para ouvir, ouça. Note que os ruídos da terra deveriam despertar a nossa atenção
para a voz do firmamento. Pois como poderemos escapar se dermos as costas Àquele
que fala desde o céu!
A Visão do Trono Divino
Ezequiel 1. 26-28
Todas as partes dessa visão não eram mais do que um prefácio e uma introdução
para essa parte. Nelas, Deus havia se dado a conhecer como Senhor dos anjos e
Supremo Diretor de todos os assuntos desse mundo inferior. A partir daí, podemos
inferir que Deus é capaz de realizar efetivamente qualquer coisa que, através
dos seus profetas, possa prometer ou ameace fazer. Os anjos são seus servos e os
homens são seus instrumentos. Mas agora que uma divina revelação será feita a um
profeta, e através dele à igreja, devemos olhar mais alto, a um lugar que está
acima dos seres viventes e das rodas, e esperar que isso aconteça a partir do
Verbo eterno, ou Daquele que tem a responsabilidade sobre esses versos. Ao ouvir
uma voz que vinha do firmamento, Ezequiel olhou para cima, como João também fez,
para ver de quem era a voz que falava com ele. João viu o Filho do Homem,
Apocalipse 1.12,13. A segunda pessoa da Trindade às vezes se apresentava como um
homem antes de transmitir a sua mensagem. O Espírito de profecia é chamado de
Espírito de Cristo (1 Pe 1.11) e de Testemunho de Jesus, Apocalipse 19.10. 1.
Essa glória de Cristo, vista pelo profeta, estava acima do firmamento que, por
sua vez, estava acima das cabeças dos seres viventes, v. 26. Note que as
próprias cabeças dos anjos estavam sob os pés do Senhor Jesus, pois o firmamento
que estava sob as suas cabeças também está sob seus pés. Os anjos, as
autoridades e as potestades estão sujeitos a Ele, 1 Pedro 3.22. Essa dignidade e
soberania do Redentor, antes da sua encarnação, aumentam sua condescendência na
encarnação, quando assumiu uma posição um pouco menor do que a dos anjos,
Hebreus 2.9. 2. A primeira coisa que o profeta observou foi o trono, pois a
revelação divina vem acompanhada e apoiada pela autoridade real. Devemos ter uma
visão de fé em Deus, e em Cristo, que estão assentados em Seu trono. A primeira
coisa que João descobriu nas suas visões foi um trono posto no céu (Ap 4.2), o
que exigia reverência e submissão. Este é um trono de glória, um trono de graça,
um trono de triunfo, um trono de governo e um trono de julgamento. O Senhor
preparou o seu trono nos céus, e também preparou esse trono para o seu Filho, a
quem havia estabelecido como Rei no seu santo monte de Sião. 3. Ezequiel viu,
sobre o trono, alguém que tinha a aparência de um homem. É uma boa noticia para
os filhos dos homens saber que o trono acima do firmamento está ocupado por
alguém que não tem vergonha de se apresentar, mesmo ali, com a aparência de um
homem. Daniel, em sua visão, observou que o reino e o seu domínio haviam sido
dados ao Filho do homem. Portanto, Ele tem autoridade para realizar o juízo,
porque é o Filho do homem (Jo 5.27). Foi assim que Ele se mostrou nessas visões.
4. Ele o viu como se fosse um príncipe e um juiz sobre o seu trono. Embora ele
estivesse se mostrando sob a forma de um homem, a sua aparência tinha
infinitamente mais do que a glória humana, v. 27. (1) Será que Deus é uma luz
brilhante? Sim, Ele é. Ao ser visto pelo profeta, Ele tinha a cor do âmbar, isto
é, havia um esplendor de luz ao seu redor, pois Deus habita na luz e se cobre
com ela como se fosse uma veste. Como o Redentor se humilhou para nos trazer a
salvação! Sim, Ele permitiu que a Sua glória fosse eclipsada pelo véu da Sua
condição humana! (2) Será que Deus é um fogo consumidor? Sim, Ele é. Desde seus
lombos, para cima e para baixo, havia a semelhança de um fogo. O fogo acima dos
seus lombos envolvia o âmbar, ele estava no interior e também do lado de fora.
Aquele que estava abaixo dos seus lombos estava mais externo e aberto, mas
também ostentava o mesmo esplendor. Alguns entendem que o primeiro significa a
natureza divina de Cristo, a glória e a virtude que estão escondidas sob a cor
do âmbar, uma coisa que nenhum homem viu nem poderá ver. Outros supõem que esta
seja a sua natureza humana, cuja glória alguns viram, a glória do Unigênito do
Pai, cheio de graça e de verdade, João 1.14. Ele tinha raios saindo da sua mão,
e ali estava o esconderijo da sua força, Habacuque 3.4. O fogo, dentro do qual o
Filho do homem estava aparecendo, pode ter a função de mostrar que os
julgamentos estavam prontos para serem realizados sobre Judá e Jerusalém, e
teria a forma de uma indignação abrasadora do Todo-Poderoso, que devora seus
adversários. Nada é mais terrível à maioria dos ousados pecadores do que a ira
Daquele que está sentado sobre o trono, e também do Cordeiro, Apocalipse 6.16.
Está chegando o dia em que o Senhor Jesus irá se revelar num fogo abrasador, 2
Tessalonicenses 1.7,8. Portanto, devemos nos preocupar em beijar o Filho antes
que Deus Pai fique zangado. 5. O trono estava cercado por um arco-íris, v. 28, e
isso também acontece na visão de João, Apocalipse 4.3. O brilho ao seu redor
tinha várias cores, como o arco que está na nuvem nos dias de chuva. É como se
fosse uma exibição de majestade e parece ser muito grande, como se fosse um
penhor de misericórdia e parece ser muito bondoso. Ele é a confirmação da
promessa que Deus fez de que nunca mais inundaria o mundo, quando disse: “Eu o
verei para me lembrar do concerto eterno”, Gênesis 9.16. Isso quer dizer que
Aquele que está sentado no trono é o Mediador do pacto, que o seu domínio sobre
nós visa a nossa proteção e não a nossa destruição, que Ele se interpõe entre
nós e os castigos que os nossos pecados merecem, e que todas as promessas, de
Deus Pai, nele são sim e amém. Note que agora que o fogo da ira de Deus estava
sendo derramado contra Jerusalém, Ele deveria estabelecer limites para essa ira
a fim de impedi-la de fazer uma destruição total. O próprio Senhor olharia para
o arco e se lembraria da aliança, conforme a Sua promessa em relação a um caso
como esse, Levítico 26.42.
Por último, temos a conclusão dessa visão. Observe: 1. Que conhecimentos o
profeta recebeu através dela. Essa visão mostrava a glória do Senhor. Aqui, como
em todo o tempo, o profeta cuidou de se proteger contra quaisquer pensamentos
corpóreos grosseiros a respeito de Deus, que pudessem desacreditar a pureza
transcendente da sua natureza. Ele não diz: Esse é o Senhor (porque Ele é
invisível), mas: Essa é a glória do Senhor através da qual Ele se compraz em se
manifestar como um Ser glorioso. No entanto, penso que ela não era,
literalmente, a glória do Senhor, mas a semelhança dessa glória, ou uma parte
dela. Alguns pensam que o profeta tenha tido a visão de uma semelhança dessa
glória, ou seja, uma sombra dela e não a sua verdadeira imagem. Hebreus 10.1. 2.
Que impressões a visão causou sobre ele. “Vendo isso, cai sobre o meu rosto”.
(1) Ele ficou dominado por ela, foi conquistado pelo seu brilho deslumbrante, e
caiu sobre o seu rosto, pois quem é capaz de se manter de pé perante esse Senhor
Santo, o Deus do céu e da terra? Ou então: (2) Ele se prostrou tomado por um
senso humilde da sua própria indignidade perante a honra que lhe havia sido
feita, e por causa da infinita distância que agora, mais do que nunca, ele
percebia existir entre si e Deus. Ele caiu sobre o seu rosto como um sinal
daquela santa reverência e respeito a Deus, pelos quais estava possuído, e que
ocupavam a sua mente. Note que quanto mais Deus demonstrar ter prazer em se
revelar a nós, mais humildes devemos ser em Sua gloriosa presença. O profeta
caiu sobre o seu rosto para adorar a majestade de Deus, para implorar por sua
misericórdia e protestar contra a ira que viu pronta para ser lançada contra os
filhos do seu povo. 3. Que instruções Ezequiel recebeu através da visão. Tudo
que ele viu teve apenas a função de prepará-lo para aquilo que ele estava
prestes a ouvir, pois a fé vem através daquilo que ouvimos. Portanto, ele ouviu
a voz daquele que falou, pois somos ensinados pelas palavras, não meramente por
hieróglifos. Quando ele caiu sobre o seu rosto, pronto para receber a palavra,
então ouviu a voz daquele que falou. Pois Deus se deleita em ensinar os
humildes.
O Profeta Recebeu a Missão de Repreender
Ezequiel 2. 1-5
Como também acontece mais tarde, o título que foi dado aqui, a Ezequiel, permite
várias observações. Deus, quando fala ao profeta, chama-o de Filho do homem (vv.
1,3), Filho de Adão e Filho da terra. Certa vez Daniel também foi chamado assim
(Dn 8.17), mas apenas uma vez. Essa maneira de chamar não foi usada para nenhum
outro profeta, a não ser para o profeta Ezequiel. Podemos entendê-la: 1. Como um
título empregado para diminuí-lo e colocá-lo em uma posição mais humilde. Como
Ezequiel seria o repositório de abundantes revelações, ele deveria ter em mente,
que sendo o filho do homem, também é uma criatura fraca, desprezível e mortal.
Entre outras coisas que lhe foram mostradas, era necessário que soubesse disso,
que era filho do homem. Portanto, tratava-se de uma maravilhosa condescendência
de Deus o fato de ter se alegrado por se manifestar a Ezequiel. Agora, o profeta
se encontra entre criaturas vivas - os anjos, no entanto, ele não pode se
esquecer de que é um homem, uma criatura mortal. Mas o que um homem deveria
fazer, ou um filho de homem, para ser assim visitado e dignificado? Embora Deus
tivesse aqui um esplêndido séqüito de santos anjos em volta do seu trono,
prontos para partir nas suas missões, Ele deixa todos para trás e escolhe
Ezequiel, um filho do homem, para ser seu mensageiro para os filhos de Israel.
Afinal, temos esse tesouro em vasos de barro e as mensagens de Deus nos são
transmitidas por homens iguais a nós, cujo medo não nos aterroriza, nem a sua
mão pesa sobre nós. Ezequiel era um sacerdote, mas o sacerdócio estava
desacreditado e a sua honra havia sido lançada por terra. Portanto, seria
próprio que ele, e os demais da sua ordem, se humilhassem e se rebaixassem por
serem filhos do homem, por serem homens comuns. Agora ele seria empregado como
profeta, o embaixador de Deus e um soberano dos reinos (Jr 1.10), um posto de
grande honra, mas ele deve se lembrar de que é um filho de homem. Portanto,
qualquer coisa que fizer não será pelos seus méritos, mas pelo poder da graça
divina à qual, portanto, deverá ser direcionada toda a glória. Ou: 2. Como se
fosse um título de honra e dignidade outorgado ao profeta, pois esse é um dos
títulos do Messias no Antigo Testamento (Daniel 7.13, “Eis que vinha nas nuvens
do céu um como o filho do homem”). Cristo utilizou esse título muitas vezes
dizendo que era O Filho do homem. Os profetas tipificavam a Cristo, pois tinham
fácil acesso a Deus Pai, e grande autoridade entre os homens. Portanto, assim
como Davi, o rei que foi chamado de ungido de Deus, ou Cristo, o profeta também
é chamado de filho do homem.
I
Aqui Ezequiel foi elevado e recebeu a ordem para ficar de pé a fim de receber a
sua missão, vv. 1,2. Ele levanta-se:
1. Por um divino comando: “Filho do homem, põe-te em pé”. O fato de Ezequiel
estar prostrado significava uma postura de grande reverência, mas o fato de ter
se colocado em pé revelava que estava pronto e preparado para a missão. Nossos
atos de amor a Deus não devem impedir, mas apressar e estimular os atos que
devemos praticar por Ele. O profeta prostrou-se sobre o seu rosto tomado por um
santo temor e reverência a Deus, porém foi rapidamente levantado, pois aqueles
que se humilham serão exaltados. Deus não se apraz com o abatimento dos seus
servos. A mesma coisa que os humilhar servirá para exaltá-los. O mesmo espírito
de servidão se tornará um espírito da adoção. “Põe-te em pé, e falarei contigo”.
Note que podemos ter a certeza de que Deus falará conosco quando estivermos
prontos para fazer aquilo que Ele estiver nos pedindo para fazer.
2. Por um divino poder que acompanhava esse comando, v. 2. Deus mandou que o
profeta se levantasse, mas como não podia contar com as suas próprias forças
para se colocar de pé, nem coragem para enfrentar a visão, o Espírito entrou
nele e o colocou de pé. Note que Deus sente bondade e alegria ao colaborar
naquilo que está pedindo de nós e levanta aqueles a quem pediu para se levantar.
Devemos nos mexer e então, Deus colocará forças dentro de nós. Devemos trabalhar
pela nossa salvação, e então, Deus irá colaborar conosco. O profeta observou que
o Espírito havia entrado nele quando Cristo lhe falou, pois Cristo transmite o
seu Espírito através da sua palavra por ser um meio comum de comunicação e faz
com que a palavra seja efetiva através do Espírito. O Espírito colocou o profeta
sobre seus pés, erguendo-o do seu desânimo, pois Ele é o Consolador. Assim, em
um caso semelhante, Daniel foi fortalecido pelo toque divino (Dn 10.18) e João
foi erguido pela mão direita de Cristo colocada sobre ele, Apocalipse 1.17. O
Espírito colocou o profeta sobre seus pés, tornando-o disposto e pronto para
fazer o que lhe fosse mandado. Depois, o profeta ouviu o que estava sendo dito.
Anteriormente, ele havia ouvido a voz que lhe falava (cap 1.28). Mas, agora, ele
ouviu novamente essa voz de uma forma mais distinta e clara, ouviu e se submeteu
a ela. O Espírito nos coloca sobre os nossos pés, inclina a nossa vontade para
que possamos cumprir o nosso dever e, dessa maneira, prepara o nosso
entendimento para receber o conhecimento divino.
II
Aqui Ezequiel foi enviado com uma mensagem aos filhos de Israel (v. 3): “Eu te
envio aos filhos de Israel”. Durante muitos séculos Deus lhes tinha enviado seus
servos, os profetas, levantando-os a tempo para depois enviá-los, mas isso de
nada adiantou. Agora os profetas estavam sendo enviados ao cativeiro porque os
filhos de Israel haviam insultado os mensageiros de Deus. Mesmo estando no
cativeiro, Deus enviou esse profeta para o meio deles, para verificar se seus
ouvidos estavam abertos à disciplina, agora que estavam presos pelas cordas da
aflição. Os meios da graça continuam a existir para nós como o suporte da vida,
mesmo depois de terem sido desprezados ou esquecidos por muitas vezes. Agora,
observe:
1. A rebelião do povo a quem esse embaixador havia sido enviado. Ele foi enviado
para levá-los a se submeterem a Deus, para levar os filhos de Israel de volta
para o Senhor seu Deus. O profeta precisava saber a razão de ter sido enviado
nessa missão, e a razão era que se tratava de uma nação que havia se rebelado
(v. 3). Era uma casa rebelde, v. 5. Eles são chamados de filhos de Israel. Eles
conservavam o nome dos seus piedosos antecessores. No entanto, desgraçadamente
se degeneraram, se tornaram uma nação Goim, uma palavra que geralmente é usada
para designar os gentios. Os filhos de Israel haviam se tornado iguais aos
filhos dos etíopes (Am 9.7), que eram rebeldes. E os rebeldes que estão em casa
são muito mais perigosos que os rebeldes que estão fora. Suas idolatrias e suas
falsas religiões eram os pecados que, mais do que tudo, serviam para
identificá-los como uma nação rebelde, pois haviam estabelecido um novo príncipe
em oposição ao legitimo Soberano, prestando homenagens e pagando tributos ao
usurpador, e esse é o pior grau a que uma rebelião pode chegar. (1) Durante todo
esse tempo eles haviam sido uma geração rebelde, e persistido nessa rebelião.
Eles e seus pais haviam transgredido contra o precioso Senhor. Note que nem
sempre aqueles que estão agindo direito tiveram seus pais e seus antepassados ao
seu lado, pois existem erros e corrupções que são muito antigos. E o fato dos
seus pais terem caminhado desta forma está muito longe de ser uma desculpa para
permanecerem caminhando errado. Isso realmente representa um agravante por ser
uma tentativa de justificar o pecado daqueles que viveram antes de nós. Mas
esses Filhos de Israel haviam continuado com a sua rebelião até aqueles dias,
apesar dos vários meios e métodos usados para corrigi-los. Eles continuavam
rebeldes até esses dias, mesmo sofrendo as censuras divinas pela sua rebelião.
Vários métodos e meios foram utilizados com a finalidade de resgatá-los. Muitos
dentre eles que estavam em grande aflição, como Acaz, pecavam ainda mais. Eles
não haviam melhorado diante de todas as mudanças que lhes sobrevieram, mas ainda
permaneciam da mesma forma. (2) Agora eles haviam se endurecido nessa rebelião.
Eram filhos descarados, impudentes e não conseguiam mais sentir vergonha. Seu
coração estava impassível, obstinado e não conseguia se curvar, pois não sentiam
vergonha nem medo do pecado. Eles não se deixariam modificar por qualquer senso
de honra ou dever. Prefiro esperar que nem todos tivessem esse caráter, mas
apenas alguns; talvez apenas seus líderes. Observe: [1] Deus sabia muito bem o
que estava acontecendo com eles, como eram inflexíveis e incorrigíveis. Note que
Deus conhece perfeitamente o verdadeiro caráter de cada homem, quaisquer que
sejam as suas religiões ou pretensões. [2] Deus contou isso ao profeta para que
ele pudesse saber como lidar melhor com esses rebeldes, e de que modo deveria
conduzi-los. Ele deveria censurar esses homens categórica e diretamente, deveria
lidar claramente com eles, embora pudessem pensar que o profeta estivesse sendo
rude demais para com eles. Deus disse a Ezequiel que não se impressionasse nem
considerasse um obstáculo a possibilidade de sua pregação não ter nenhum efeito
sobre eles, pois isto realmente poderia acontecer.
2. O domínio do Príncipe através de quem esse embaixador foi enviado. (1) Aquele
que envia tem autoridade para dar ordens: “Eu te envio a eles, e lhes dirás:
Assim diz o Senhor Jeová”, v. 4. Note que é prerrogativa de Cristo enviar
profetas e ministros, e também determinar aquilo que devem fazer. Paulo
agradeceu a Cristo Jesus por tê-lo colocado no ministério (1 Tm 1.12), pois da
mesma maneira como Cristo foi enviado pelo Pai, os ministros são enviados por
Ele. E embora tenha recebido o Espírito sem medida, Ele o concede de acordo com
uma medida determinada, dizendo: “Recebei o Espírito Santo”. Eles são impudentes
e rebeldes, mas mesmo assim Eu te envio a eles. Observe que Cristo dá os meios
da graça a muitos, embora saiba que não irão fazer deles um bom uso. O bondoso
Senhor coloca dádivas valiosas nas mãos dos tolos para que possam alcançar
sabedoria, sim, daqueles que, além de não se interessarem por ela, ainda colocam
o coração contra ela. Dessa maneira, Ele exaltará a sua própria graça e
justificará o seu próprio julgamento, deixando-os sem perdão e tornando a
condenação ainda mais insuportável. (2) Aquele que envia tem autoridade para dar
ordens àqueles a quem os mensageiros são enviados: “Tu lhes dirás” assim diz o
Senhor Deus. Tudo o que o mensageiro lhes dissesse deveria ser dito em nome de
Deus. Estas palavras estariam reforçadas pela sua autoridade e era como se
fossem transmitidas pelo próprio Senhor. Cristo revelou as Suas doutrinas na
qualidade de Filho. Era como se Ele dissesse: Em verdade, em verdade, vos digo
que os profetas são como servos. Assim disse o Senhor Deus, o meu e o vosso
Senhor. Observe que os escritos dos profetas são a palavra de Deus, e assim
devem ser considerados por cada um de nós. (3) Ele tem autoridade para ordenar
uma prestação de contas por parte daqueles a quem tinha enviado seus
embaixadores. Caso ouvissem, caso se omitissem, caso atendessem à sua palavra ou
virassem as costas para ela, ainda assim saberiam que houve um profeta entre
eles, e saberiam disso por experiência própria. [1] Se ouvissem e obedecessem
ficariam sabendo, através dessa confortável experiência, que a palavra que lhes
fez tanto bem havia sido levada até eles por alguém que tinha recebido uma
missão de Deus e um poder divino para desempenhá-la. Assim, aqueles que se
converteram pela pregação do apóstolo Paulo são considerados os selos do seu
apostolado, 1 Coríntios 9.2. Quando o coração dos homens é abrasado pela
preciosa palavra, e a sua vontade se curva perante ela, então eles ficam sabendo
e se tornam testemunhas perante si mesmos de que não se trata da palavra de um
homem, mas de Deus. [2] Se eles se abstiverem e ignorarem a palavra (como
podemos pensar que farão, pois se trata de uma casa rebelde) ainda assim saberão
através das suas consciências e dos justos castigos que Deus irá lhes impor, que
desprezaram e rejeitaram alguém que era verdadeiramente um profeta. Eles
saberiam, através de tudo que iria lhes custar, da sua confusão e da sua triste
experiência, como é pernicioso desprezar os mensageiros de Deus. Eles saberiam,
através do cumprimento das ameaças, que o profeta que as revelou foi enviado por
Deus. As palavras que são proferidas por Deus alcançam os homens, Zacarias 1.6.
Observe, em primeiro lugar, que aqueles a quem a palavra de Deus for enviada
serão julgados, quer tenham ouvido ou se omitido. E o destino deles dependerá da
atitude que tiverem em relação a esta preciosa e bendita palavra. Em segundo
lugar, é certo que Deus será glorificado e a Sua palavra será mais exaltada e
honrada quer tenhamos nos edificado através dela, ou não. A origem divina da
bendita palavra de Deus será demonstrada naqueles em que ela tiver um sabor de
vida para a vida, ou de morte para a morte.
O Profeta Foi Advertido a Não Ter Medo.
A Missão que lhe Foi Dada
Ezequiel 2. 6-10
O profeta, tendo recebido seu poder e autoridade, recebe também uma missão.
Trata-se de um cargo de honra, ao qual ele foi promovido. Além disso, também era
um cargo de serviço e trabalho, e aqui está o que lhe foi pedido,
I
Ele deveria ser ousado e agir na propagação da sua verdade com destemida coragem
e determinação, não deveria se afastar desse trabalho ou se deixar levar pela
indolência e pelas dificuldades e oposições que provavelmente iria encontrar no
seu desempenho: “Filho do homem, não os temas”, v. 6. Note que aqueles que
estiverem dispostos a fazer qualquer coisa com a finalidade de servir a Deus não
devem ter medo da face do homem, pois o medo dos homens representa um obstáculo
que os confundirá na obra de Deus. 1. Assim como havia feito antes, Deus explica
ao profeta qual era o caráter daqueles a quem estava sendo enviado, vv. 3,4.
Eles são como sarças e espinhos que arranham, cortam e afligem o homem em
qualquer lugar que ele possa estar. Eles estão continuamente zombando dos
profetas de Deus, e tentando confundir as suas palavras (Mateus 22.15). Estes
não passam de sarças pontiagudas e espinhos dolorosos. O melhor deles é como a
sarça, e o mais reto é pior que uma sebe de espinhos, Miquéias 7.4. Espinhos e
sarças são frutos do pecado e da maldição e semelhantes à aversão que existe
entre a semente da mulher e a semente da serpente. Note que os homens iníquos,
especialmente aqueles que perseguem os profetas de Deus e o povo de Deus, são
como sarças e espinhos que são perniciosos ao solo, abafam as sementes,
prejudicam a seara de Deus e são irritantes e enfadonhos para os agricultores.
Mas eles estão perto de serem amaldiçoados, e o seu fim será o fogo. No entanto,
às vezes Deus usa esses homens para corrigir e instruir o seu povo, da mesma
maneira como Gideão ensinou os homens de Sucote com espinhos e abrolhos, Juízes
8.16. Mas essa não é a pior parte do seu caráter. Eles são como escorpiões,
venenosos e malignos. A picada de um escorpião é mil vezes mais dolorosa do que
o arranhão de uma sarça. Os perseguidores formam uma geração de víboras. Eles
são a semente da serpente, e o seu veneno está sob a sua língua. Além disso,
eles são mais ardilosos do que qualquer animal selvagem no campo. E, o que deixa
o caso do profeta mais difícil é que ele morará entre esses escorpiões.
Portanto, não poderá ficar seguro e tranqüilo na sua própria casa. Esses maus
homens serão maus vizinhos que, portanto, terão muitas oportunidades e não
deixarão ninguém escapar sem lhes fazer alguma maldade. Deus chama a atenção do
profeta para isso, assim como Cristo o fez ao anjo de uma das suas igrejas,
Apocalipse 2.13: “Eu sei as tuas obras, e onde habitas, que é onde está o trono
de Satanás”. Na sua visão, Ezequiel tinha estado conversando com os anjos. Mas
quando ele desce do monte, descobre que habita entre escorpiões. 2. Deus explica
qual seria a conduta desses homens em relação ao profeta. Eles fariam tudo que
pudessem para atemorizá-lo com a sua aparência e as suas palavras, iriam se
fazer de valentões e ameaçá-lo, iriam olhar para ele com desprezo e malícia,
fariam o máximo para rebaixá-lo e inquietá-lo, pois assim poderiam levá-lo a
desistir de ser profeta, ou pelo menos deixar de apontar as faltas que cometiam,
deixando de ameaçar a todos com os castigos da parte de Deus. E se isso não
fosse suficiente para calá-lo, ao menos poderiam deixá-lo perplexo e aflito,
perturbando o repouso da sua mente. Esses homens estavam agora numa condição de
submissão, destituídos de todo poder, de modo que não tinham outra maneira de
perseguir o profeta a não ser com seus olhares e as suas palavras, e foi isso
que fizeram. “Tens dito e feito coisas más e nelas permaneces”, Jeremias 3.5. Se
por acaso tivessem mais poder, eles teriam feito mais maldades. Mas agora
estavam no cativeiro, sofrendo por causa da sua rebelião e, particularmente, por
terem se comportado mal em relação aos profetas de Deus, não se beneficiando da
presença deles. Mas assim mesmo continuavam a ser maus, como sempre. (“Ainda que
pisasses o tolo com uma mão de gral entre grãos de cevada pilada, não se iria
dele a sua estultícia”, Provérbios 27.22). Nenhuma providência divina poderá
humilhar e reformar os homens a não ser que a graça de Deus trabalhe neles.
Porém, por mais maliciosos que fossem, Ezequiel não deveria ter medo deles nem
ficar desanimado, não deveria se afastar do seu trabalho, ou de qualquer parte
dele, ou ficar abatido ou deprimido por causa de todas as suas ameaças, mas
continuar firme com determinação e alegria, certo de que estava seguro sob a
proteção divina.
II
É necessário que o profeta seja fiel, v. 7. 1. Ele deverá ser fiel ao Cristo que
o enviou: “Tua lhes dirás as minhas palavras”. Observe que da mesma maneira como
o profeta se sente honrado por ter sido escolhido para falar a palavra de Deus,
também é seu dever abrir caminho até esses homens e não falar nada que não
esteja de pleno acordo com a palavra de Deus. Os ministros devem sempre falar de
acordo com essa regra. 2. Ele deverá ser fiel às almas daqueles a quem foi
enviado. Quer ouvissem ou não essas palavras, ele deveria transmitir a mensagem
da mesma maneira como a recebeu. Ele deve levá-los a obedecer a palavra e não a
procurar acomodá-la aos seus caprichos. “É verdade que eles são rebeldes, a
própria rebelião em pessoa, mas mesmo assim deves lhes transmitir as minhas
palavras, sejam elas agradáveis ou não”. Note que quando as pessoas não
aproveitam as oportunidades que lhes são oferecidas, ou não se mostram afáveis
para com a Palavra, isso não representa uma boa razão para deixar de pregar, nem
devemos deixar de lado uma oportunidade de praticar o bem, embora tenhamos uma
grande quantidade de razões para pensar que o nosso esforço não terá efeito.
III
É necessário que o profeta obedeça as instruções.
1. No livro que foi estendido à sua frente existia uma intimação geral, além das
instruções que foram transmitidas ao profeta, v. 10. (1) As suas instruções eram
amplas, pois o rolo do livro havia sido escrito por dentro e por fora, no lado
interior e no lado exterior. Era composto por folhas de papel escritas dos dois
lados. Um lado continha seus pecados, o outro descrevia os castigos de Deus que
foram lançados sobre eles por causa desses pecados. Observe que Deus tinha muito
a dizer aos seus servos quando se degeneraram e se tornaram rebeldes. (2) As
instruções eram melancólicas. O profeta estava sendo enviado numa triste missão,
e os assuntos abordados pelo livro eram lamentações, prantos e aflições. A
finalidade dessa mensagem pode ser entendida a partir da impressão que traria
sobre a mente daqueles que prestassem cuidadosa atenção a ela, pois provocaria o
seu pranto e seus gritos: Ai! Meu Deus! Tanto a descoberta dos pecados, como a
ameaça da ira, causariam lamentações. O que poderia ser mais lamentável, mais
doloroso, mais angustiante do que ver um povo santo e feliz afundado em tamanho
estado de pecado e miséria, como se pode verificar através da profecia desse
livro quando fala sobre os judeus dessa época? Ezequiel repete as lamentações de
Jeremias. Observe que embora Deus seja rico em misericórdia, os pecadores
impenitentes descobrirão que existem lamentações e ais em suas palavras.
2. Aqui foi expressa a ordem dada ao profeta de observar as instruções, tanto as
que recebeu como as que iria transmitir. Agora ele estava prestes a receber a
sua mensagem, e aqui recebeu ordens: (1). Ele deveria prestar muita atenção à
mensagem: “Tu, ó filho do homem, ouve o que eu te digo”, v. 8. Observe que
aqueles que falam da parte de Deus para os outros devem ter a certeza de ter
ouvido as suas palavras, e de obedecer a sua voz. “Não sejas rebelde, não
recuses assumir essa missão ou transmitir esta mensagem. Não vá para longe, como
fez Jonas, com medo de desagradar seus companheiros. Eles são uma casa rebelde e
entre eles viveste, mas não te tornes como eles, nem concordes com eles em
qualquer coisa que seja pecado”. Se os ministros, que são reprovadores por
ofício, forem coniventes com o pecado e indulgentes com os pecadores, e não
mostrarem a iniqüidade destes, nem as suas conseqüências fatais por medo de
contrariá-los e de despertarem a sua má vontade, estarão se tornando, eles
mesmos, participantes da sua culpa e rebeldes como os pecadores. Mesmo que o
povo não cumpra o dever de se reformar, seus ministros deverão fazê-lo. Eles têm
o dever de censurar o povo, que, por sua vez, se sentirá consolado por esta
censura, a despeito da reação que expressem em relação ao profeta, Isaías 1.5. O
Senhor Deus abriu os meus ouvidos, e eu não fui rebelde. Até mesmo os melhores
homens, quando passam por momentos e situações difíceis, precisam ser prevenidos
contra os piores crimes. (2) Ele deveria meditar sobre isso, experimentando o
seu favor e o seu poder. “Não ouças apenas aquilo que te digo, mas abre a tua
boca e come aquilo que te dou. Prepara-te para comer, e come com disposição e
com apetite”. Todos os filhos de Deus ficam contentes por terem sido achados por
Ele e comerão aquilo que Ele lhes der. Aquilo que a mão de Deus estendeu para
Ezequiel era um rolo de livro, ou o volume de um livro. Era um livro ou um
papiro de papel ou pergaminho totalmente escrito e enrolado. A revelação divina
chega até nós através da mão de Cristo. Ele a deu aos profetas, Apocalipse 1.1.
Quando olhamos para o livro do Senhor, devemos estar atentos à mão pela qual ele
nos está sendo enviado. Aquele que levou o livro para o profeta estendeu-o
perante ele, para que agora pudesse engoli-lo com uma fé inquestionável. Porém
ele deveria entender completamente o seu conteúdo, para depois recebê-lo e
torná-lo seu. Não seja rebelde, diz Cristo, mas coma aquilo que eu te dou. Se
não recebermos aquilo que Cristo nos destinou nas suas ordenanças e
providências, se não nos submetermos à sua palavra e ao Seu cajado, e tampouco
nos reconciliarmos com ambos, seremos considerados rebeldes.
O Profeta Recebe Ordens Para Comer o Rolo. Instruções ao Profeta. A
Relutância de Ezequiel Para Ser um Reprovador
Ezequiel 3. 1-15
Estes versículos são adequadamente unidos por alguns tradutores ao capítulo
anterior, como sendo parte do mesmo texto e uma continuação da mesma visão. Os
profetas recebiam a Palavra de Deus para que pudessem entregá-la ao povo de Deus
e proviam a si mesmos para que pudessem provê-los com o conhecimento do
pensamento e da vontade de Deus. Agora, aqui o profeta é ensinado:
I
Sobre como deve receber a revelação divina, v. 1. Cristo (a quem ele viu no
trono, Ez 1.26) lhe disse, em outras palavras: “Filho do homem, come este rolo,
recebe esta revelação em teu entendimento, toma-a, toma o seu significado,
entende-a corretamente, recebe-a em teu coração, aplica-a, e sê influenciado por
ela. Imprime-a em tua mente, medita nela e mastiga-a; toma-a por inteiro, não a
dificultes. Tem prazer nela como fazes com a tua comida, e que a tua alma seja
alimentada e fortalecida por ela. Que ela seja comida e bebida para ti, e como o
teu alimento necessário. Enche-te dela, como tens te enchido da comida que
comes.” Assim os ministros devem, em seus estudos e meditações, absorver esta
Palavra de Deus, que devem pregar aos outros. Achando-se as tuas palavras, logo
as comi, Jeremias 15.16. Eles devem estar bem familiarizados com as coisas de
Deus e ser influenciados por elas, para que possam falar delas claramente e
calorosamente, com muita luz e calor divinos. Agora observe: 1. Como esta ordem
é fixada sobre o profeta. No capítulo anterior, Come o que eu te dou. E aqui (v.
1), “Come o que achares. Aquilo que é apresentado a ti pela mão de Cristo.” Note
que devemos receber sem discussão a palavra de Deus, o que quer que nos seja
trazido por Aquele que é o Verbo de Deus. Devemos comer aquilo que acharmos
colocado diante de nós nas Escrituras. E outra vez (v. 3), “Dá de comer ao teu
ventre e enche as tuas entranhas deste rolo. Não o coma e o devolva, como aquilo
que é nauseante, mas coma-o e retenha-o, como aquilo que é nutritivo e agradável
ao estômago. Banqueteia-te com esta visão até que estejas cheio da sua
substância, como aconteceu com Eliú, Jó 32.18. Que a palavra tenha lugar em ti,
o lugar mais interior.” Devemos nos esforçar em nossos próprios corações, para
que possamos fazer com que eles recebam e acolham devidamente a palavra de Deus,
para que cada parte possa cumprir a sua função, para que haja a devida digestão
da palavra de Deus, para que possa ser transformada in succum et sanguinem – em
espírito e sangue. Devemos nos esvaziar das coisas terrenas, para que possamos
encher os nossos ventres com este rolo. 2. Como esta ordem é explicada (v. 10):
“Coloca no coração todas as minhas palavras que te hei de dizer, para falares ao
povo, ouve-as com os teus ouvidos, e recebe-as por amor a eles.” Ponde vós estas
palavras em vossos ouvidos, Lucas 9.44. Cristo exige a atenção do profeta não só
para o que Ele diz agora, mas para tudo o que falar a qualquer momento no
futuro: Recebe tudo isto em teu coração. Medita estas coisas e ocupa-te nelas
inteiramente, 1 Timóteo 4.15. 3. Como esta ordem foi obedecida em visão. Ele
abriu a boca, e Cristo fez com que ele comesse o rolo, v. 2. Se estivermos
verdadeiramente dispostos a receber a palavra nos nossos corações, Cristo, pelo
seu Espírito, a colocará dentro de nós e fará com que ela habite ricamente em
nossos corações. Se aquele que abre o rolo (e pelo seu Espírito, como o Espírito
de revelação, o expõe diante de nós), também não abrir o nosso entendimento (e
pelo seu Espírito, como o Espírito de sabedoria, não nos der o conhecimento dele
e nos fizer comê-lo), seremos estranhos a ele, para sempre. O profeta tinha
motivos para temer que o rolo fosse um bocado desagradável e um prato desgostoso
para se fazer uma refeição, mas em sua boca se mostrou doce como o mel. Observe
que se prontamente obedecermos até mesmo às ordens mais difíceis, encontraremos
a consolação na reflexão que nos compensará por todas as aflições que
enfrentarmos no caminho do nosso dever. Embora o rolo estivesse repleto de
lamentações, choro e desgosto, para o profeta ele era doce como o mel. Observe
que as almas misericordiosas podem receber, com grande prazer, estas verdades de
Deus que falam de muito terror ao povo ímpio. Encontramos o apóstolo João
descrevendo uma situação como esta, Apocalipse 10.9,10. Ele tomou o livro da mão
do anjo e o comeu, e em sua boca foi, como este, doce como o mel. Mas foi amargo
em seu ventre. E descobriremos que este também foi, porque o profeta ficou
amargurado (v. 14).
II
Como ele deveria entregar aos outros esta revelação divina que ele mesmo havia
recebido (v. 1): Come este rolo, vai, e fala à casa de Israel. Ele não deve
começar a pregar as coisas de Deus aos outros até que ele mesmo as tenha
entendido. Que ele não vá sem esta missão, nem faça a obra pela metade. Mas
depois de ter entendido as coisas completamente, ele deve se ocupar e ser ousado
na pregação delas, para o bem dos outros. Não devemos ocultar as palavras do
Santo (Jó 6.10), porque isto seria enterrar o talento que nos foi dado para
negociarmos. Ele deve ir e falar à casa de Israel, pois é um privilégio terem os
estatutos e os juízos de Deus revelados a si. Assim como a entrega da lei (os
oráculos vivos), também a profecia (os oráculos da vida) pertence a eles. Ele
não é enviado aos caldeus para reprová-los pelos seus pecados, mas à casa de
Israel para reprová-los pelos seus. Porque o pai corrigirá o seu próprio filho
se ele errar, e não o filho de um estranho.
1. As instruções que Ezequiel recebe quanto a falar ao povo, são, em boa parte,
as mesmas do capítulo anterior.
(1) Ele deve lhes falar tudo o que Deus lhe falar e somente isto. Ele havia dito
antes (Ez 2.7): Tu lhes dirás as minhas palavras. Aqui ele diz (v. 4), dize-lhes
as minhas palavras. Ele não só deve falar aquilo que em essência é o mesmo que
Deus lhe disse, mas deve se expressar tão próximo quanto possível da mesma
linguagem e expressões. O bendito Paulo, embora sendo um homem capacitado, só
fala das coisas de Deus utilizando as palavras que o Espírito Santo ensina, 1
Coríntios 2.13. As verdades da Escritura se tornam ainda mais claras quando
utilizamos a linguagem da Escritura, pois é a sua roupagem nativa. E como
poderíamos falar melhor do pensamento de Deus do que utilizando as suas
palavras?
(2) Ele deve se lembrar de que eles são a casa de Israel, a quem ele é enviado
para falar, a casa de Deus e a sua própria casa. Portanto, ele deveria ter uma
preocupação especial e tratar a situação de modo fiel e afetuoso. Ele os
conhecia intimamente, sendo não só seus compatriotas, mas seus companheiros na
tribulação. Eles estavam unidos pelo sofrimento, e ultimamente haviam sido
companheiros de viagem, em circunstâncias muito melancólicas, da Judéia até a
Babilônia, e com freqüência haviam misturado as suas lágrimas, algo que só
poderia consolidar seus sentimentos mútuos. Foi bom para o povo ter um profeta
que sabia por experiência própria como se compadecer deles e que poderia ser
tocado pelo senso de suas deficiências. Foi bom para o profeta ter que lidar com
aqueles da sua própria nação, não com um povo de fala estranha e de língua
difícil, de lábios carregados, cujas palavras não poderia entender, um povo
pesado de língua, com quem seria intolerável e impossível conversar. Todo idioma
estrangeiro nos parece ser carregado e pesado. “Tu não és enviado a um povo de
estranha fala, com quem não poderias falar nem ouvir, nem entender nem ser
entendido, exceto por meio de um intérprete.” Alguns entendem que os apóstolos
certamente foram enviados a muitos povos de fala estranha, mas não poderiam ter
feito nada de bom entre estes se não tivessem o dom de línguas. Mas Ezequiel foi
enviado apenas a um único povo, apenas a alguns, os seus, com quem tinha
familiaridade e assim poderia ter a esperança de encontrar aceitação.
(3) Ele deve se lembrar do que Deus já havia lhe dito quanto ao mau caráter
daqueles a quem ele foi enviado. Se enfrentasse o desânimo e o desapontamento
deles, Ezequiel não deveria se sentir ofendido. Eles eram um povo de rosto
obstinado e coração duro (v. 7). Nenhuma condenação de pecado faria com que se
envergonhassem, nenhum aviso de ira os faria tremer. Duas coisas agravavam a
obstinação deles: [1] Eles eram mais obstinados do que seus vizinhos teriam sido
se o profeta lhes tivesse sido enviado. Se Deus o enviasse a qualquer outro
povo, embora fosse de fala estranha, certamente teria ouvido as suas palavras.
Estes ao menos o teriam ouvido pacientemente e lhe mostrado o respeito que ele
não poderia obter dos seus próprios compatriotas. Os ninivitas foram tocados
pela pregação de Jonas, enquanto a casa de Israel, que estava tão cercada por
uma grande nuvem de profetas, estava repleta de soberba e rebeldia. Mas o que
diremos diante destas coisas? Os meios da graça são dados àqueles que não os
aproveitarão e retidos daqueles que os teriam aproveitado. Devemos entender esta
questão com base na soberania divina e dizer: “Senhor, os teus juízos são muito
profundos.” [2] Eles eram obstinados contra o próprio Deus: “Israel não te
quererá dar ouvidos, porque não me querem dar ouvidos a mim;” eles não
considerarão a palavra do profeta, porque não considerarão a vara de Deus, pela
qual a voz do Senhor clama na cidade. Se eles não acreditam em Deus quando Ele
lhes fala através de um ministro, também não acreditariam se lhes falasse
através de uma voz vinda do céu. Portanto, eles rejeitam aquilo que o profeta
diz, porque são palavras que vêm de Deus e a mente carnal é inimiga de Deus.
Eles têm um preconceito contra a lei de Deus e por esta razão se fazem de surdos
aos seus profetas, cuja tarefa é fazer com que as pessoas obedeçam à lei.
(4) Ele deve decidir tomar coragem e Cristo promete fortalecê-lo através desta
atitude, vv. 8,9. Ele é enviado àqueles que têm um rosto obstinado e são duros
de coração, que não receberão nenhuma pressão nem se comoverão seja por bem ou
por mal. Eles se orgulharão por afrontar o mensageiro de Deus e por confrontar a
sua mensagem. Será uma tarefa difícil saber como lidar com eles. Mas: [1] Deus o
capacitará a enfrentá-los: “Eis que fiz duro o teu rosto contra o seu rosto, e
forte a tua fronte contra a sua fronte, com toda a firmeza e ousadia que o caso
requer.” Talvez Ezequiel estivesse naturalmente tímido e receoso, mas se Deus
não o considerou qualificado, pela sua graça o tornou qualificado para enfrentar
as maiores dificuldades. Note que quanto mais insolente e impiedoso for um povo
em sua oposição à religião, mais abertamente e resolutamente o povo de Deus deve
se mostrar na prática e na defesa dela. Que o inocente se levante contra o
hipócrita, Jó 17.8. Quando o vício é ousado, a virtude não deve ser furtiva. E
quando Deus tem uma obra a realizar, Ele estimula os homens para isso e lhes dá
a força necessária. Se houver necessidade, Deus, pela sua graça, poderá tornar,
e tornará a fronte dos ministros fiéis como um diamante, de forma que os poderes
mais ameaçadores não os desfigurarão. O Senhor Deus ajudará os homens: “Porque o
Senhor Jeová me ajuda, pelo que me não confundo. Por isso, pus o rosto como um
seixo e sei que não serei confundido”, Isaías 50.7. [2] Ele recebe a ordem de
ter bom ânimo com relação a isso e prosseguir em seu trabalho com uma segurança
santa, não dando valor às críticas ou às ameaças dos seus inimigos: “Não os
temas, nem te assombres com o seu rosto. Não permita que as ameaças da sua
maldade impotente lancem um desânimo sobre ti ou uma pedra de tropeço diante de
ti.” Pecadores ousados devem ter reprovadores ousados. As bestas ruins devem ser
repreendidas severamente (Tt 1.12,13), devem ser salvas com temor, Judas 23.
Aqueles que se mantiverem fiéis e dedicados no serviço a Deus poderão estar
certos do favor de Deus, e não precisarão ficar assombrados com a aparência
soberba dos homens. Não devemos permitir que um semblante agressivo que espanta
uma língua maledicente faça calar uma língua reprovadora.
(5) Ele deveria se manter firme com eles em sua pregação, qualquer que fosse o
resultado, v. 11. Ele deve ir aos do cativeiro, que estando em aflição, é de se
esperar que recebam a instrução. Ele deve olhar para eles como se fossem os
filhos do seu povo, a quem ele era quase aparentado e por quem, portanto,
deveria ter uma preocupação muito afetuosa, como Paulo se sentia em relação aos
seus compatriotas, Romanos 9.3. E ele deve lhes dizer não só o que o Senhor
disse, mas que foi o Senhor quem o disse. Que ele fale em nome de Deus e apóie o
que disse sobre a Sua autoridade: Assim diz o Senhor Jeová, quer ouçam, quer
deixem de ouvir. Não que o êxito que os nossos ministros tenham possa ser
indiferente para nós. Mas aconteça o que acontecer, devemos continuar com o
nosso trabalho e deixar a questão para Deus. Não devemos dizer “Aqui estão
alguns tão bons que não precisamos falar com eles,” ou, “Aqui estão outros tão
ruins que não adianta falar com eles”. Mas seja qual for a situação, devemos
entregar a mensagem fielmente, dizendo-lhes: “O Senhor Deus diz assim e assim.
Se rejeitarem, o farão por sua conta e risco.”
2. Após as instruções completas terem sido dadas ao profeta de acordo com a sua
tarefa, somos aqui informados sobre alguns detalhes:
(1) Com que satisfação esta sua missão foi aplaudida pelos santos anjos, que
estavam muito alegres por verem alguém de uma natureza inferior à deles ser
empregado e receber tamanha confiança para desempenhar uma missão tão honrosa.
Ele ouviu uma voz de grande estrondo (v. 12), como se os anjos se juntassem e se
aglomerassem para ver a posse de um profeta. Porque eles vêem, através da igreja
(isto é, pelo reflexo da igreja), a multiforme sabedoria de Deus, Efésios 3.10.
Eles pareciam se empenhar em se aproximar desta grande visão. Ele ouviu o
barulho das suas asas que tocavam, ou (conforme a palavra) beijavam umas as
outras, demonstrando as afeições e assistências mútuas dos anjos. Ele também
ouviu o barulho das rodas da Providência movendo-se defronte aos anjos e em
harmonia com eles. Tudo isto tinha como objetivo chamar a sua atenção e
convencê-lo de que Deus, que o enviou, tendo um grupo tão glorioso de servos,
sem dúvida tinha poder suficiente para apoiá-lo em sua missão. Mas todo este
ruído terminou em uma voz de louvor. Ele os ouviu dizendo, “Bendita seja a
glória do Senhor, desde o seu lugar.” [1] Este lugar é o céu, o Seu lugar
elevado, de onde a sua glória estava agora em visão descendo, ou para onde
estava agora voltando. Que a companhia inumerável de anjos no alto se junte com
aqueles que são empregados nesta visão ao dizer, Bendita seja a glória do
Senhor. Louvai o Senhor dos céus. Louvai-o, todos os seus anjos, Salmos 148.1,2.
[2] Este lugar é o templo, o Seu lugar na Terra, de onde a sua glória estava
agora partindo. Eles lamentam a partida da glória, mas adoram a justiça de Deus
nisto. Aconteça o que acontecer, Deus é bendito e glorioso e o será para sempre.
O profeta Isaías ouviu Deus ser louvado deste modo quando recebeu a sua comissão
(Is 6.3); é uma consolação a todos os servos fiéis de Deus, quando vêem o quanto
Deus é desonrado neste mundo inferior, pensar no quanto Ele é admirado e
glorificado no mundo superior. A glória do Senhor sofre grandes desrespeitos
onde vivemos, porém é extremamente honrada no local onde Ele vive.
(2) Com que relutância do seu próprio espírito, mas com que eficácia poderosa do
Espírito de Deus o profeta foi trazido ao desempenho da sua função. A graça que
lhe foi dada não foi vã. Porquê: [1] O Espírito o guiou com uma mão forte. Deus
o mandou ir, mas ele não se moveu até que o Espírito o levantou. O Espírito das
criaturas vivas que estava nas rodas, agora também estava no profeta e o
levantou, primeiro para ouvir mais distintamente as aclamações dos anjos (v.
12), mas depois disso (v. 14) o levantou e o levou para fazer a sua obra, que
ele estava relutante em fazer. Ele estava muito hesitante, com medo de trazer um
problema para si mesmo, ou se sentia receoso de predizer isto ao seu povo. Ele
teria sido alegremente desculpado, mas deveria reconhecer, como outro profeta
reconhece (Jr 20.7): Mais forte foste do que eu, e prevaleceste. Ezequiel, de
bom grado, guardaria tudo o que ouviu e viu para si mesmo, para que a situação
não fosse além, mas a mão do Senhor era forte sobre ele e o dominou. Ele foi
conduzido pelo impulso profético de um modo contrário às suas próprias
inclinações, de forma que só pudesse falar das coisas que tinha ouvido e visto,
como os apóstolos, Atos 4.20. Note que Deus provê o necessário àqueles a quem
chama para o ministério, como também inclina seus corações ao desempenho de suas
funções. [2] Ele prosseguiu com o coração entristecido: Então, o Espírito me
levantou e me levou. Ele ordenou, e eu obedeci, mas o fiz em amargura, no calor
do meu espírito. Talvez Ezequiel tivesse visto que tarefa difícil Jeremias teve
em Jerusalém quando se apresentou como profeta. Que grande esforço fez. Que
oposição enfrentou. Como foi ofendido por mão e língua e que maus tratos sofreu.
E tudo isto não resultou em nenhum proveito. “E - pensa Ezequiel - será que devo
ser colocado como um alvo, como aconteceu com Jeremias?” A vida de um cativo já
era bastante sofrida. Mas como seria a vida de um profeta no cativeiro?
Portanto, ele obedeceu nesta aflição e sob esta perturbação. Observe que pode
haver, em alguns casos, uma grande relutância ligada à corrupção, mesmo onde
houver uma evidente predominância da graça. “Eu não fui desobediente à visão
celestial, nem fugi da tarefa, como Jonas. Mas estive triste, nem um pouco
satisfeito com isso.” Quando Ezequiel recebeu a revelação divina, esta lhe foi
doce como o mel (v. 3). Ele poderia, com muito prazer, ter passado todos os seus
dias meditando nela. Mas tendo que pregá-la a outros, que ele previa que
ficariam endurecidos e exasperados por causa dela e que teriam a sua condenação
agravada, então ele obedece, porém sente uma grande amargura. Observe que é uma
grande aflição para os ministros fiéis, que faz com que prossigam com um coração
pesado em seu trabalho, encontrarem pessoas intratáveis e odiosas para serem
convertidas. Ele obedeceu no calor do seu espírito, por causa dos desestímulos
que previu que iria enfrentar. Mas a mão do Senhor foi forte sobre ele, não só
para induzi-lo ao seu trabalho, mas para qualificá-lo para este, para ajudá-lo a
ir até o fim e animá-lo contra as dificuldades que enfrentaria (assim podemos
entender). E quando Ezequiel descobriu isto, se reconciliou melhor com a sua
missão e se aplicou a ela. Então ele veio aos do cativeiro (v. 15), a algum
lugar onde havia muitos deles reunidos e se sentou onde eles se sentavam,
trabalhando ou lendo, ou conversando e continuou entre eles por sete dias para
ouvir o que eles diziam e observar o que eles faziam. E aguardou, durante todo
aquele tempo, que a palavra do Senhor lhe fosse enviada. Note que aqueles que
querem falar adequadamente e proveitosamente às pessoas sobre as suas almas,
devem se familiarizar com elas e com o caso delas. Devem fazer exatamente como
Ezequiel fez aqui, devem se sentar onde elas se sentam e lhes falar
familiarmente a respeito das coisas de Deus, e se colocar na condição delas.
Sim, mesmo que se sentem às margens dos rios da Babilônia. Mas observe que ele
estava ali espantado, tomado de pesar pelos pecados e desgraças do seu povo e
dominado pela pompa da visão que tinha visto. Ele estava ali desolado (alguns
lêem assim). Deus não lhe mostrava nenhuma visão, os homens não lhe faziam
nenhuma visita. Assim, ele foi deixado para digerir a sua dor e ser levado a um
estado de espírito melhor, antes que a palavra do Senhor lhe fosse concedida.
Observe que Deus permite que aqueles a quem Ele deseja exaltar e prosperar sejam
primeiramente humilhados e sofram dificuldades por algum tempo.
A Função do Atalaia
Ezequiel 3. 16-21
Deus deu estas instruções adicionais ao profeta no final de sete dias, isto é,
no sétimo dia depois da visão que ele teve. E é muito provável que tanto aquele
como este fossem o sábado, que a casa de Israel, mesmo em seu cativeiro,
observava da forma como podia naquelas circunstâncias. Não encontramos que seus
conquistadores e opressores os tenham ligado a qualquer serviço constante, como
os seus capatazes egípcios haviam feito anteriormente. Assim, entendemos que
eles poderiam observar o descanso do sábado como um sinal que os distinguiria
dos seus vizinhos. Mas para as reuniões aos sábados, eles não tinham a
conveniência do templo ou da sinagoga. Parece que se reuniam em um lugar perto
da margem do rio, onde costumavam orar (como em Atos 16.13). Ali eles se reuniam
aos sábados. Ali seus inimigos os repreendiam devido aos cânticos de Sião (Sl
137.1,3). Ali Ezequiel os encontrou e a Palavra do Senhor veio a ele naquele
momento e lugar. Aquele que havia estado se entretendo e meditando nas coisas de
Deus a semana toda, pôde falar ao povo em nome de Deus no sábado e se dispôs a
ouvir Deus falar com ele. Neste dia de sábado Ezequiel não foi tão honrado com
visões da glória de Deus, como havia sido no sábado anterior. Mas ele é
claramente e por uma analogia muito comum, informado de sua obrigação e daquilo
que deve comunicar ao povo. Note que os arrebatamentos e êxtases de alegria não
são o pão de cada dia dos filhos de Deus, embora possam ser banqueteados com
estes em ocasiões especiais. Jamais devemos negar que temos uma verdadeira
comunhão com Deus (1 Jo 1.3), embora não a tenhamos constantemente ou tão
sensivelmente quanto em algumas vezes. E embora os mistérios do reino dos céus
possam às vezes ser examinados, o mais comum é a simples pregação que traz a
nossa edificação. Deus aqui diz ao profeta qual era o seu ofício e qual era o
dever deste ofício. E isto (podemos supor) ele deveria dizer ao povo, para que
pudessem prestar atenção ao que ele dizia, aproveitando estas palavras
satisfatoriamente. Note que é bom que um povo saiba e considere que ordens os
seus ministros têm para eles. E todos eles deverão estar cientes de que, em
breve, prestarão contas das atitudes que tomarem em relação a estas ordens.
Observe:
I
Para qual ofício o profeta é chamado: Filho do homem, eu te dei por atalaia
sobre a casa de Israel, v. 17. A visão que ele teve deixou-o atônito. Ele não
sabia o que fazer. Entretanto, Deus usou esta clara comparação, que serviu
melhor para levá-lo ao entendimento de seu trabalho e assim reconciliá-lo com
ele. Ele se sentou entre os cativos e falou pouco. Mas Deus vem a ele e lhe diz
que é atalaia e tem algo a lhes dizer. Ele é designado para ser atalaia na
cidade, para guardá-la contra o fogo, contra os assaltantes e os perturbadores
da paz, como atalaia sobre o rebanho, para guardá-lo contra ladrões e bestas
feras. Mas ele era especialmente como atalaia no arraial, em um país invadido ou
em uma cidade sitiada, isto é, para vigiar os movimentos do inimigo e soar um
alarme por ocasião de sua aproximação, ao primeiro sinal de perigo. Isto mostra
que a casa de Israel está em estado militar e exposta a inimigos que são sutis e
insolentes em suas tentativas de guerra. Sim, e cada um dos membros daquela casa
em particular está em perigo e precisa ter a preocupação de ficar em guarda.
Note que os ministros são atalaias ou vigias dos muros da igreja (Is 62.6), ou
guardas que rondam a cidade, Cantares 3.3. Este é um ofício trabalhoso. Os
atalaias devem se manter acordados, mesmo que estejam com muito sono; e se
manter do lado de fora, mesmo que estejam com muito frio. Devem ficar de pé quer
o tempo esteja bom ou ruim na torre de vigia, Isaías 21.8; Gênesis 31.40. É um
ofício perigoso. Às vezes eles não podem permanecer no seu posto, mas, estão em
perigo de morte pelos inimigos, que poderão alcançar o seu objetivo se matarem o
sentinela. No entanto, eles não ousam deixar o seu posto sob pena de morrerem
pelas mãos do seu general. Os atalaias da igreja estão em um dilema: os homens
irão amaldiçoá-los se forem fiéis e Deus os amaldiçoará se forem falsos. Mas
este é um ofício necessário. A casa de Israel não seria segura sem os atalaias.
E mesmo assim, a não ser que o Senhor a guarde, em vão vigia a sentinela, Salmos
127.1,2.
II
Qual é o dever deste ofício. O trabalho do atalaia é observar e alertar.
1. O profeta, como atalaia, deve observar o que Deus disse a respeito do seu
povo, não só a respeito do povo como um todo, a que as profecias de Jeremias e
de outros profetas tinham a referência mais comum, mas a respeito de
determinadas pessoas, de acordo com o seu caráter. Ele não deve, como outras
atalaias, olhar em volta para espiar o perigo e coletar informações, mas deve
olhar para Deus, não tendo a necessidade de olhar além: Ouve a palavra da minha
boca, v. 17. Observe que aqueles que pregarão deverão, em primeiro lugar, ouvir.
Porque como é que aqueles que não aprenderam poderão ensinar os outros?
2. Ele deve alertar o povo sobre o que ouviu. Assim como o atalaia deve ter
olhos em sua cabeça, ele também deve ter uma língua em sua cabeça. Se ele for
mudo, será tão ruim quanto se fosse cego, Isaías 56.10. Tu os avisarás da minha
parte, soarás um alarme no monte santo. O atalaia não o fará em seu próprio
nome, ou como de si mesmo, mas em nome de Deus e da parte dele. Os ministros são
a boca de Deus para os filhos dos homens. As Escrituras foram redigidas para a
nossa admoestação. “Por eles [pelos juízos do Senhor] é admoestado o teu servo”,
Salmos 19.11. Mas como aquilo que é entregue viva voce – de viva voz comumente
causa uma impressão mais profunda, Deus se agrada de usar homens como nós, que
estão igualmente preocupados em reforçar os avisos da palavra escrita. Agora o
profeta, em sua pregação, deve distinguir entre os ímpios e os justos, os
preciosos e os vis, e em suas aplicações deve adequar seus avisos a cada um,
dando a cada um a sua porção. E se o profeta fizesse isto, teria a sua
consolação, qualquer que fosse o resultado. Mas se não o fizesse, seria
responsável pelo fracasso alheio.
(1) Alguns daqueles com quem ele deveria tratar eram ímpios e ele deveria
avisá-los que não continuassem em sua impiedade, mas se convertessem, vv. 18,19.
Aqui podemos observar: [1] Que o Deus do céu disse, e diz, a todo homem ímpio,
que se este ainda continuar em suas transgressões, certamente morrerá. A sua
iniqüidade, sem dúvida alguma, será a sua ruína. Ela tende à ruína e terminará
em ruína. Morrendo, tu morrerás de uma morte muito grande, morrerás eternamente,
estarás sempre morrendo, mas nunca estarás morto. O homem ímpio morrerá em sua
iniqüidade, morrerá sob a sua culpa, morrerá sob o domínio do pecado e da culpa.
[2] Que, se um ímpio deixar sua impiedade e seu caminho ímpio, ele viverá e a
ruína com a qual ele é ameaçado será evitada. E para que ele possa viver, é
avisado do perigo que está correndo. O homem ímpio morrerá se continuar em seu
caminho iníquo, mas viverá se vier a se arrepender. Observe que ele deve se
converter da sua impiedade e do seu caminho ímpio. Não é suficiente que um homem
se converta do seu caminho ímpio por uma restauração exterior, que pode parecer
o efeito dos seus pecados deixando-o em vez de ele deixando os seus pecados. Mas
ele deve se converter da sua impiedade, do amor por ela e da inclinação a ela,
através de uma regeneração interior. Se ele não se converter do seu caminho
ímpio, há pouca esperança de que ele se converterá da sua impiedade. [3] Que é o
dever dos ministros tanto avisar os pecadores do perigo do pecado, quanto
assegurá-los do benefício do arrependimento, mostrar-lhes como serão infelizes
se continuarem no pecado e como poderão ser felizes se tão somente se
arrependerem e se converterem. Note que o ministério da palavra diz respeito aos
assuntos de vida e morte, pois estas são as coisas que ele coloca diante de nós,
sim, a bênção e a maldição, para que possamos escapar da maldição e herdar a
bênção. [4] Que embora os ministros não avisem os ímpios como deveriam, sobre o
perigo que eles correm e a desgraça que lhes sobrevirá, isto não será aceito
como uma desculpa para aqueles que ainda continuarem em suas transgressões.
Porque, embora o atalaia não lhes dê aviso, eles morrerão em sua iniqüidade,
porque tiveram avisos suficientes que foram dados pela providência de Deus e
pelas suas próprias consciências. E se eles tivessem aceitado os avisos,
poderiam ter salvado as suas vidas. [5] Que se os ministros não forem fiéis à
confiança que lhes foi depositada, se eles não avisarem os pecadores das
conseqüências fatais do pecado, mas permitirem que continuem sem ser reprovados,
o sangue daqueles que perecerem por causa da sua negligência será requerido de
sua mão. Eles serão acusados no dia do juízo de que foi devido à sua
infidelidade que tais almas preciosas pereceram no pecado. Porque quem sabe se
estas tivessem recebido um aviso claro, poderiam ter escapado da ira futura a
tempo? E, se ser cúmplice do assassinato de um corpo que está morrendo contrai
uma culpa tão hedionda, o que é ser cúmplice da ruína de uma alma imortal? [6]
Que se os ministros cumprirem o seu dever ao darem aviso aos pecadores, mesmo
que o aviso não seja aceito eles podem ter esta satisfação, de que estão livres
do sangue destes pecadores e livraram as suas próprias almas, embora não possam
prevalecer a ponto de livrarem a deles. Aqueles que forem fiéis terão a sua
recompensa, mesmo que não sejam bem sucedidos na tarefa da evangelização.
(2) Alguns daqueles com quem ele teria que lidar eram justos. Ao menos ele tinha
motivos para pensar assim. Ao fazer um julgamento levando em consideração a
caridade, a conclusão é que eles eram justos. E ele deve adverti-los a não
apostatarem e não se desviarem da sua justiça, vv. 20,21. Podemos observar aqui:
[1] Que os melhores homens do mundo têm a necessidade de ser avisados contra a
apostasia e ser informados do perigo que correm, quer estejam perto ou longe
dela. Os servos de Deus devem ser avisados (Sl 19.11) a não negligenciarem o seu
trabalho e não abandonarem o seu serviço. Uma boa maneira de impedir que caiamos
é mantermos um temor santo de cair, Hebreus 4.1. Temamos, portanto. E mesmo
aqueles que permanecem de pé pela fé (Rm 11.20) não devem ser presunçosos, mas
devem temer. Portanto, eles precisam ser avisados. [2] Há uma justiça da qual um
homem pode se afastar, uma justiça aparente. E se os homens se afastarem dela,
parecerá que ela nunca foi sincera ou admissível. Isto indicará que ela não foi
plausível, porque se fossem dos nossos, ficariam sem dúvida conosco, 1 João
2.19. Há muitos que começam no espírito, mas que acabam na carne. Que dirigem os
seus rostos para o céu, mas que olham para trás. Que tiveram um primeiro amor,
mas perderam-no e assim se afastaram do santo mandamento. [3] Quando os homens
se afastam da sua justiça, eles logo aprendem a cometer iniqüidades. Quando eles
se tornam descuidados e negligentes nos deveres da adoração a Deus, os
negligenciam, ou são negligentes neles, eles se tornam uma presa fácil para o
tentador. Omissões dão lugar a comissões. [4] Quando os homens se afastam da sua
justiça e cometem iniqüidades, é justo que Deus coloque diante deles pedras de
tropeço, para que fiquem cada vez piores, até que estejam prontos para a
destruição. Quando o Faraó endureceu o seu coração, Deus o endureceu. Quando os
pecadores viram as suas costas a Deus, eles abandonam o seu serviço e assim
lançam uma reprovação sobre este serviço. Então o Senhor, por meio de um justo
juízo, não só retira a sua graça limitadora e os entrega às próprias
concupiscências dos seus corações, mas os coloca – pela sua providência – em
circunstâncias que provocam o seu pecado e que apressam a sua ruína. Há aqueles
a quem o próprio Cristo é uma pedra de tropeço e uma rocha de escândalo, 1 Pedro
2.8. [5] A justiça que os homens abandonam jamais será lembrada para a sua honra
ou consolação. Ela não lhes servirá de nada neste mundo, nem no outro. Os
apóstatas perdem tudo o que fizeram de bom. Os seus serviços e sofrimentos são
todos em vão e jamais serão levados em consideração, devido a não terem tido
continuidade. É uma regra na lei, Factum non dicitur, quod non perseverat – Só
se pode dizer que fazemos algo, se o fizermos com perseverança, Gálatas 3.3,4.
[6] Se os ministros não derem um aviso claro, como devem, da fraqueza dos
melhores, da sua tendência de tropeçar e cair, das tentações específicas a que
estão sujeitos e das conseqüências fatais da apostasia, a ruína daqueles que
apostatarem será posta em sua porta e responderão por ela. Não estamos dizendo
apenas que há aqueles que são advertidos contra a apostasia e que mesmo assim se
afastam da justiça. Mas este caso não é colocado aqui, como ocorreu no caso do
homem ímpio. Ao contrário, um homem justo, sendo avisado, aceita o aviso e não
peca (v. 21). Porque, se dermos instrução ao sábio, ele será ainda mais sábio.
Não devemos enganar os ímpios, e também não devemos enganar os justos, como se
estivessem perfeitamente seguros em qualquer lugar neste lado do céu. [7] Se os
ministros derem aviso e as pessoas aceitarem, será bom para ambos. Nada é mais
bonito do que um sábio reprovador que fala a um ouvido obediente. Um viverá
porque foi avisado e o outro livrou a sua alma. Que mais um bom ministro pode
desejar do que salvar a si mesmo e aqueles que o ouvem? 1 Timóteo 4.16.
A Obstinação do Povo é Predita
Ezequiel 3. 22-27
Depois de toda a grande e magnífica revelação que Deus fez de Si mesmo ao
profeta e das instruções completas que ele havia lhe dado de como lidar com
aqueles a quem o enviou com uma ampla comissão, deveríamos ter esperado, neste
momento, vê-lo pregando a palavra de Deus a uma grande congregação de Israel.
Mas aqui encontramos o oposto. O seu trabalho aqui, a princípio, não parece de
forma alguma proporcional à pompa do seu chamado.
I
Nós o temos aqui retirado para um aprendizado adicional. Através de sua
indisposição de ir, parece que ele não estava tão completamente convencido
quanto poderia ter estado da habilidade Daquele que o enviou para defendê-lo.
Portanto, para encorajá-lo contra as dificuldades que ele previu, Deus irá
favorecê-lo com outra visão de sua glória, a qual lhe daria (dentre outros
benefícios) vida e ânimo para a sua tarefa. Para isso, Deus o chama para sair ao
vale (v. 22) e ali terá uma conversa com ele. Observe e admire a condescendência
de Deus ao conversar de forma tão familiar com um homem, um filho de homem, um
pobre cativo, um homem pecador, que quando Deus o enviou, foi em tristeza de
espírito e que estava neste momento indisposto para o seu trabalho. Reconheçamos
o fato de estarmos para sempre em dívida com a mediação de Cristo neste bendito
relacionamento e comunhão entre Deus e o homem, entre o céu e a terra. Veja aqui
o benefício de estar a sós em algumas ocasiões e o quanto isto colabora com a
contemplação. É muito consolador estar a sós com Deus, afastado do mundo para
conversar com Ele, ouvir aquilo que Ele tem a nos dizer e falar com Ele. E um
homem bom reconhecerá que está o mais bem acompanhado possível quando está a sós
com Deus. Ezequiel saiu para o vale com mais disposição do que quando foi ao
encontro daqueles que estavam no cativeiro (v. 15). Porque aqueles que sabem o
que é ter comunhão com Deus preferem esta bênção a qualquer conversa com este
mundo, especialmente a que normalmente se tem. Ele saiu ao vale e ali contemplou
a mesma visão que tivera junto ao rio Quebar. Porque Deus não está ligado a
lugares. Observe que aqueles que seguirem a Deus encontrarão consolações de sua
parte onde quer que forem. Deus o chamou para fora para falar com ele, porém lhe
concedeu mais do que isto: Ele lhe mostrou a sua glória, v. 23. Mesmo que não
tenhamos visões tão excelentes, devemos reconhecer que recebemos um favor que
não é, de modo algum, inferior. Pois pela fé podemos contemplar a glória do
Senhor e a mudança que experimentamos através do Espírito do Senhor. E todos os
santos têm esta grande honra. Louvai ao Senhor, 2 Coríntios 3.18.
II
Nós o temos aqui restringido quanto a um ensino adicional para o presente.
Quando viu a glória do Senhor, Ezequiel caiu sobre o seu rosto, sendo tomado de
espanto pela majestade de Deus e por um temor do seu desprazer. Mas o Espírito
entrou nele para levantá-lo e então ele se recobrou e se levantou sobre os seus
pés e ouviu o que o Espírito lhe sussurrou, o que é muito surpreendente. Era de
se esperar, agora, que Deus o enviasse diretamente para o lugar principal onde a
multidão se reunia, lhe concedesse favor aos olhos dos seus irmãos e tornasse
tanto Ezequiel quanto a sua mensagem aceitáveis para eles. Que ele tivesse uma
porta mais ampla aberta para si e que Deus lhe desse a oportunidade de abrir a
sua boca com muita ousadia. Mas aqui lhe foi dito o oposto de tudo isso.
1. Em vez de enviá-lo a uma reunião pública, o Senhor ordena que Ezequiel fique
confinado ao seu próprio quarto: Entra, encerra-te dentro da tua casa, v. 24.
Ele não estava disposto a aparecer em público. E quando apareceu, o povo não lhe
deu atenção, nem lhe mostrou o respeito que ele merecia. E como uma justa
repreensão tanto a ele quanto a eles (ao profeta, pela sua timidez em relação ao
povo. E ao povo, por sua frieza em relação ao profeta), Deus o proíbe de
aparecer em público. Observe que as nossas escolhas definem, freqüentemente, as
nossas punições. E é uma atitude justa da parte de Deus remover os professores
quando eles, ou o seu povo, ou ambos, ficam indiferentes às reuniões solenes.
Alguns pensam que Ezequiel deveria se fechar para lhes dar um sinal do cerco de
Jerusalém, no qual o povo deveria ficar hermeticamente fechado como ele estava
em sua casa. Ele fala deste assunto no próximo capítulo. Ele deveria permanecer
dentro de sua casa para que pudesse receber outras revelações da parte de Deus e
pudesse se abastecer abundantemente daquilo que teria a dizer ao povo quando
saísse. Os anciãos de Judá o visitaram e algumas vezes se sentaram diante dele
em sua casa (Ez 8.1) para serem testemunhas dos seus momentos de êxtase. Mas até
o capítulo 11, versículo 25, ele não falou aos do cativeiro todas as coisas que
o Senhor lhe havia mostrado. Observe que aqueles que são chamados para pregar
devem dedicar tempo ao estudo e também um tempo considerável para estarem dentro
de suas casas, dedicando-se à leitura e à meditação e assim o seu proveito
poderá se manifestar a todos.
2. Em vez de lhe assegurar a estima e o afeto daqueles a quem o enviou, o Senhor
diz que eles porão cordas sobre o profeta, e o ligarão com elas (v. 25), como se
estivessem lidando: (1) Com um criminoso. Eles o amarrarão para puni-lo como um
perturbador da paz. Embora eles mesmos tenham sido enviados para o cativeiro na
Babilônia por perseguirem os profetas, ali eles continuam a persegui-los. (2)
Com um homem enlouquecido. Eles iriam querer amarrá-lo como alguém que está fora
de si. Porque a isto eles atribuíram os seus movimentos violentos durante seus
momentos de arrebatamento. Os capitães perguntaram a Jeú: De onde veio este
louco a ti? Festo disse a Paulo: Estás louco. E assim os judeus falaram a
respeito do nosso Senhor Jesus, Marcos 3.21. Talvez este seja o motivo pelo qual
ele deveria permanecer dentro de sua casa, porque caso contrário, eles o
amarrariam, sob a acusação de estar louco. Portanto, ele não deveria sair de
casa para estar entre eles. Com justa razão os profetas são proibidos de ir até
aqueles que os maltratarão.
3. Em vez de abrir os seus lábios para que a sua boca pudesse manifestar o
louvor de Deus, Deus o silenciou, fez a sua língua se apegar ao céu da sua boca,
de forma que ele ficou mudo por um tempo considerável, v. 26. Os cativos zelosos
na Babilônia usaram esta imprecação contra si mesmos, de forma que, se eles se
esquecessem de Jerusalém, as suas línguas poderiam se apegar ao seu “paladar”,
Salmos 137.6. Ezequiel se lembra de Jerusalém mais do que qualquer um deles, no
entanto a sua língua se apegou ao seu paladar, e, assim, aquele que poderia
falar o melhor foi proibido de falar qualquer palavra. E o motivo dado é que
eles são uma casa rebelde a quem ele é enviado e eles não são dignos de tê-lo
como um reprovador. Ele não lhes dará instruções e admoestações, porque eles
estão perdidos e entregues a si mesmos. Anteriormente, Ezequiel recebeu ordens
para lhes falar com ousadia, por serem muito rebeldes (Ez 2.7). Mas visto que
isto não foi de nenhum proveito, ele agora recebe ordens para ficar em silêncio
e não lhes falar nada. Note que aqueles cujos corações são endurecidos contra a
condenação, são, com justa razão, privados das admoestações que poderiam evitar
a condenação. Por que aqueles que repreendem não devem ficar mudos, se após
várias tentativas, ficar comprovado que aqueles que estão sendo repreendidos
decidiram ficar surdos? Se Efraim se unir aos ídolos, deixe-o sozinho. Ficarás
mudo, e não serás um repreendedor. Isto sugere que, a menos que ele ficasse
mudo, estaria repreendendo o povo. Se ele pudesse falar alguma coisa,
testemunharia contra a impiedade dos ímpios. Mas quando Deus quiser falar com
Ezequiel e falar com ele, o profeta abrirá a sua boca, v. 27. Note que embora os
profetas de Deus possam ser silenciados por algum tempo, virá um tempo em que
Deus lhes concederá que abram a boca novamente. E quando Deus fala aos seus
ministros, Ele não só abre os seus ouvidos para que possam ouvir aquilo que Ele
lhes diz, mas abre a boca deles para que possam lhe responder. Moisés, que tinha
um véu sobre o seu rosto quando desceu para falar com o povo, tirou-o quando
subiu outra vez à excelsa presença de Deus, Êxodo 34.34.
4. Em vez de dar ao profeta a certeza de sucesso quando fosse a qualquer momento
falar ao povo, o Senhor aqui deixa a questão muito duvidosa e Ezequiel não deve
ficar perplexo nem se perturbar com relação a isso, mas deve deixar que as
coisas aconteçam. Quem ouvir, ouça e será bem vindo a este conforto. Que ele
ouça e que a sua alma viva. Mas quem deixar de ouvir o fará por sua própria
conta e risco e será obrigado a aceitar o que vier. Aquele que desdenhar,
suportará sozinho as conseqüências. Nem Deus nem o seu profeta serão
prejudicados por isso. O profeta será recompensado pela sua fidelidade ao
reprovar o pecador e Deus terá a glória da sua justiça ao condená-lo por não
aceitar a repreensão.
EZEQUIEL - John B. Taylor - EZEQUIEL Introdução e Comentário por John B. Taylor, M.A. Arquidiácono de West Ham, Essex SOQIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA e ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA EDITORA MUNDO CRISTÃO - Rua Antonio Carlos Tacconi, 75 e 79 — Cid. Dutra — 04810 São Paulo-SP
INTRODUÇÃO
I. O LIVRO DE EZEQUIEL
Para a maior parte dos leitores da Bíblia, Ezequiel é quase um livro selado. O conhecimento que têm dele vai pouco além da sua visão misteriosa do carro-trono de DEUS, com suas rodas dentro de rodas, e a visão do vale de ossos secos. Fora disto, o livro dele é tão proibitivo no seu tamanho quanto o próprio profeta na complexidade da sua personalidade. Na sua estrutura, porém, senão no seu pensamento e na sua linguagem, o livro de Ezequiel tem uma simplicidade básica, e seu arcabouço bem-organizado faz com que seja de fácil análise. Depois da visão inicial, em que Ezequiel vê a majestade de DEUS nas planícies da Babilônia, e recebe sua chamada para ser profeta à casa de Israel (1-3), segue-se uma longa série de mensagens, algumas das quais simbolicamente encenadas, mas a maioria em forma oral, prevendo e justificando a intenção de DEUS de castigar a cidade santa de Jerusalém e seus habitantes com destruição e morte (4-24). Depois, à altura da metade do livro, quando a queda de Jerusalém é representada como tendo ocorrido (embora a notícia ainda não tivesse chegado até os exilados), a atenção do leitor é desviada para as nações em derredor de Israel, e o julgamento divino contra elas é pronunciado numa série de oráculos (25-32). Nesta altura, o leitor já está preparado para a surpresa estarrecedora da notícia da destruição de Jerusalém, e 32:21 registra a declaração do fugitivo: “Caiu a cidade!” Já, porém, está raiando uma nova era, e uma nova mensagem está nos lábios de Ezequiel. Com uma comissão renovada e uma promessa de que DEUS está para restaurar Seu povo à sua própria terra, sob uma liderança piedosa mediante um tipo de ressurreição nacional (33-37), Ezequiel passa então a descrever, em termos 13 INTRODUÇÃO apocalípticos, o triunfo final do povo de DEUS sobre as hordas invasoras provenientes do norte (38, 39). O livro termina, conforme começou, com uma visão intrincada, não, desta vez, do carro-trono do Senhor avançando por sobre os ermos vazios da Babilônia, mas, sim, da nova Jerusalém com o átrio e santuário interior do seu templo, onde DEUS habitaria entre Seu povo para sempre (4048). Não é surpreendente, portanto, que a maioria dos comentaristas mais antigos considerasse Ezequiel livre da fragmentação literária imposta, pelos críticos, às profecias de Isaías, Jeremias e a alguns dos doze profetas menores. A introdução de A. B. Davidson ao seu comentário sobre Ezequiel (1892) começou com um veredito freqüentemente citado: “O livro de Ezequiel é mais simples e mais perspícuo na sua disposição do que qualquer outro dos grandes livros proféticos. Foi, provavelmente, registrado por escrito na parte posterior da vida do profeta, e, diferentemente das profecias de Isaías, que foram pronunciadas esparsamente, foi publicado na sua forma completa de uma só vez. Vinte anos mais tarde, G. B. Gray ainda pôde tirar a conclusão de que “nenhum outro livro do Antigo Testamento é distinguido por marcas tio decisivas de unidade de autoria e integridade quanto este.”2 Já na época em que McFadyen escreveu sua Introduction to the Old Testament (edição de 1932), porém, teve de empregar linguagem mais cautelosa: “Temos em Ezequiel a rara satisfação de estudar uma profecia cuidadosamente elaborada cuja autenticidade tem sido, até recentemente, praticamente indisputada.”3 A frase “até recentemente” refere-se à obra de estudiosos tais como Kraetzschmar, Hõlscher, C. C. Torrey e James Smith. Antes, porém, de considerarmos os pontos de vista destes, façamos um resumo breve dos argumentos sobre os quais tem sido baseado o conceito tradicional da unidade de Ezequiel. Há seis razões principais para atribuir o livro a um único autor, o profeta Ezequiel. 1. O livro tem uma estrutura equilibrada, conforme já observamos, e este arranjo lógico estende-se do capítulo 1 até o capítulo 48. Não há interrupções na continuidade da profecià, a não ser onde (como no caso dos oráculos contra as nações, 25-32), isto é feito para produzir um efeito deliberado. A única parte que poderia ser facilmente separada do restante, 1. Davidson, pág. ix (grifos meus). 2. G. B. Gray.^4 Criticai Introduction to the Old Testament, (1913), pág. 198. 3. McFadyen, pág. 187.
14 EZEQUIEL a visão do novo templo (4048), parece formar um equilíbrio nítido com a visão de abertura dos capítulos 1-3, e é melhor considerá-la uma conclusão apropriada para a totalidade, embora seja manifestamente de data algo posterior (cf. 40:1). 2. A mensagem do livro tem uma consistência interna que se encaixa com o equilíbrio estrutural. O ponto central é a queda de Jerusalém e a destruição do Templo. Esta é anunciada em 24:21ss. e é relatada em 33:21. Desde o capítulo 1 até 24, a mensagem de Ezequiel é de destruição e denúncia: é um atalaia colocado para advertir o povo de que esta é a conseqüência inevitável dos pecados da nação. Mas desde o capítulo 33 até 48, embora ainda se considere um atalaia com uma mensagem de retribuição e responsabilidade individuais, seu tom é de encorajamento e de restauração. Antes de 587 a.C., seu tema era que a deportação de 597 a.C., da qual ele mesmo foi uma das vítimas, certamente não era o fim do castigo de DEUS aplicado ao Seu povo: coisa pior estava para vir, e os exilados deviam estar prontos para enfrentá-la. Depois de vir esta coisa, e o pior ter acontecido, DEUS agiria para reedificar e restaurar Seu povo Israel, uma vez disciplinado. 3. O livro revela notável unidade de estilo e de linguagem. Isto se deve, em grande medida, à fraseologia repeticiosa usada no decorrer do livro. May4 dá uma lista de nada menos que 47 frases tipicamente ezequielianas, que aparecem periodicamente nas suas páginas, e muitas destas são peculiares a este profeta. Isto, naturalmente, nada comprova acerca da autoria propriamente dita, porque um redator poderia facilmente ter colhido frases típicas de Ezequiel, encaixando-as na matéria adicional que incorporava, mas é forte evidência em prol da unidade e da coerência do livro na sua etapa final, e sugere que o redator da obra acabada, se não foi o próprio Ezequiel, identificava-se estreitamente com o ponto de vista e as crenças de Ezequiel. 4. O livro tem uma clara seqüência cronológica, com datas aparecendo em 1:1, 2; 8:1; 20:1; 24: 1; 26:1; 29:1; 30:20; 31:1; 32:1, 17; 33:21; 40: 1. Nenhum outro profeta maior tem esta progressão lógica de datas, e somente Ageu e Zacarias, entre os profetas menores, oferecem um padrão comparável.5 5. Diferentemente de Isaías, Jeremias, Oséias, Amós e Zacarias, to4. IB, págs. 50-51. 5. A cronologia de Ezequiel é estudada mais detalhadamente na seção III da Introdução, abaixo, pág. 36. 15 INTRODUÇÃO dos os quais combinam matéria na primeira e na terceira pessoa do singular, aspecto este que é usualmente considerado um sinal seguro de compilação editorial, Ezequiel é escrito de forma auto-biográfica do começo ao fim. A única exceção é a introdução dupla (1:2, 3), que dá uma impressão muito forte de ser a explicação, feita por um redator, do versículo de abertura que certamente precisava dalgum tipo de interpretação para seus leitores (ver o Comentário, pág. 51). Mas esta é a única ocorrência deste tipo. 6. O retrato do caráter e da personalidade de Ezequiel parece consistente por todo o livro; há a mesma sinceridade, a mesma excentricidade, o mesmo apego sacerdotal ao simbolismo, a mesma preocupação fastidiosa com detalhes, o mesmo senso da majestade e da transcendência de DEUS. A despeito destas evidências, nunca faltou um pequeno número de críticos céticos acerca da unidade de Ezequiel. A declaração de Josefo,6 de que Ezequiel nos deixou dois livros, não deve ser forçada a carregar uma parcela grande demais da culpa disto. Há um século, Ewald distinguiu dois elementos em Ezequiel, sendo que o primeiro representava oráculos proféticos falados, e o último era a produção literária de um profeta escritor. Não achava, no entanto, que esta divisão exigisse que a unidade do livro fosse abandonada. Alguns anos mais tarde, Kraetzschmar argumentou fortemente contra a unidade literária pelo motivo de ter conseguido detectar numerosas inconsistências no texto, repetições e versões paralelas, que o levaram a postular duas recensões do livro, uma na primeira pessoa e uma na terceira pessoa. A fraqueza da conclusão de Rraetzschmar era que as únicas passagens na terceira pessoa eram 1: 3 e 24:24 (onde Javé diz: “Assim vos servirá Ezequiel de sinal”), e não é surpreendente que recebeu pouco apoio para sua teoria. Estudiosos tais como Herrmann,7 que viram a validade das evidências de Kraetzschmar mas que rejeitaram sua conclusão, preferiram a estimativa mais conservadora de Ezequiel como sendo uma unidade compilada pela própria mão do profeta, mas com acréscimos editoriais posteriores. No mesmo ano em que Herrmann produziu seu comentário sobre 6. Antigüidades, x.5.1: . . Ezequiel também, que foi a primeira pessoa que escreveu, e deixou por escrito dois livros, a respeito destes eventos” (tradução de W. Whiston). 7. Ezechielstudien (Beiträge zur Wissenschaft vom Alten Testament, 1908) e Ezechiel (Kommentar zum Alten Testament, 1924), ambos de J. Herrmann.
16 EZEQUIEL
Ezequiel, no entanto, Gustav Hölscher publicou um estudo8 que inverteu seus próprios pontos de vista conservadores de dez anos antes,9 e sujeitou o livro de Ezequiel àquilo que Rowley descreveu como sendo “o desmembramento mais dramático que já sofreu.”10 Tomou como ponto de partida a crença de que Ezequiel era um poeta e, portanto, é improvável que ele tivesse escrito muitas das passagens de prosa no livro. Além disto, cortou as passagens poéticas que não seguiam a métrica que ele considerava característica de Ezequiel. Saíram, também, as passagens em que havia simbolismo misturado com fatos concretos, porque argumentava que um verdadeiro poeta não faria tal coisa. Ainda mais arbitrário foi seu ponto de vista de que a doutrina da responsabilidade individual devia ser pós-exílica, de modo que estas passagens, também, tiveram de ser relegadas a redatores. O resultado desta análise drástica foi que Ezequiel, o profeta, ficou com apenas 170 versículos de um total de 1.273 contidos no livro que recebeu seu nome. Embora as conclusões de Hölscher fossem revolucionárias, sua metodologia não era original (Duhm tratara o livro de Jeremias de modo bem semelhante em 190311) e não demorou muito para um estudioso norte-americano, W. A. Irvin, chegar a conclusões semelhantes através de um raciocínio diferente.12 Irwin começou com um estudo detalhado de Ezequiel 15, e deduziu disto que havia uma discrepância entre o oráculo propriamente dito e sua interpretação, que não passava de puro mal-entendimento. A interpretação, portanto, não poderia ser a obra de Ezequiel. Aplicando este princípio ao restante do livro, deixou Ezequiel com cerca de 250 versículos genuínos, ou seja: apenas uma quinta parte do livro. Por mais radicais que estas avaliações possam ser, parecem conservadoras em comparação com o -ponto de vista de C. C. Torrey,13 que excluiu totalmente o profeta Ezequiel. Para ele, Ezequiaj. era um personagem fictício, inventado originalmente c. de 230 a.C., por um autor 8. G. Hölscher, Hesekiel, der Dichter und das Buch (1924). 9. G. Hölscher, Die Profeten (1914), págs. 298ss. 10. O ensaio de H. H. Rowley, “The Book of Ezekiel in Modem Study”, BJRL, XXXVI, 1953-54, págs. 146-150 (agora mais fácil de adquirir no seu livro: Men o f God: Studies in Old Testament History and Prophecy, 1963), do qual esta citação é tirada, é um panorama admirável da literatura extensiva sobre Ezequiel que pode apenas ser ligeiramente mencionada nesta Introdução. 11. B. Duhm, Das Buch Jeremia übersetzt (1903). 12. W. A. Irwin, The Problem o f Ezekiel (1943). 13. C. C. Torrey, Pseudo-Ezekiel and the Original Prophecy (1930). 17 INTRODUÇÃO que estava tentando escrever um pseudepígrafo alegadamente escrito por um dos profetas que pregava em Jerusalém durante o reinado de Manassés (c. de 696-642 a.C.; cf. 2 Rs 21:1-17). Seu raciocínio era que 1-24 tratavam primariamente de Jerusalém e que provavelmente tivessem sua origem ali (veremos este problema voltar a ocorrer mais tarde), e que as idolatrias descritas em Jerusalém (8:1-18) nSo poderiam ter ocorrido depois das reformas de Josias que ocorreram em 621 ft.C. A forma atual do livro, com seu contexto babilónico, era a obra de Um redator posterior, anti-samaritano, que o reformulou e que acrescentou os capítulos 4048 como a planta de um novo templo que excederia o esplendor daquele que a seita samaritana construiu no Monte Gerizim. James Smith14 também atribuiu o ministério de Ezequiel ao reinado de Manassés, mas considerou-o um personagem histórico cujo ministério foi exercido parcialmente na Palestina e parcialmente entre os exilados do reino do norte, o de Israel (cf. as muitas referências de Ezequiel a “toda a casa de Israel”). Pode até mesmo ter sido o sacerdote referido em 2 Reis 17: 28. Como Torrey, Smith postulou um redator posterior que transformou o livro e lhe deu seu contexto babilónico. Hemtrich15 fez uso da obra destes dois homens para dar a Ezequiel um ambiente palestiniano para a totalidade do seu ministério profético. NSo os seguiu em fazer este ministério remontar até ao reino de Manassés, mas concentrou-o nos anos 593-586 a.C. Um discípulo de Ezequiel, posteriormente, revestiu sua obra em roupagens babilónicas e acrescentou os capítulos 1 e 4048, bem como outra matéria editorial. A obra de Hemtrich foi importante e influenciou vários escritores,16 o principal entre eles sendo o alemão Alfred Bertholet, cujo segundo comentário sobre Ezequiel17 incorporou a declaração clássica do ponto de vista de que Ezequiel exerceu um ministério duplo. A partir de 593 a.C., a data da sua chamada, Ezequiel profetizou em Jerusalém até a sua queda; foi, entao, levado para o cativeiro e continuou seu ministério na Babilônia. Fischer18 modificou o ponto de vista de Bertholet no 14. J. S. Smith, The Book o f the Prophet Ezekiel: a New Introduction (1931). 15. V. Hemtrich, Ezechielprobleme (BZA W, 1932). 16. Cf. Oesterly e Robinson, An Introduction to the Books o f the Old Testament (1934), pág. 325; J. Battersby Harford, Studies in the Book o f Ezekiel (1935), 17. A. Bertholet, Hesekiel CHandbuch zum Alten Testament, 1936). Seu comentário anterior foi publicado em 1897 como Das Buch Hesekiel (Kurzer HandCommentar zum Alten Testament). 18. O. R. Fischer, The Unity o f the Book o f Ezekiel (1939) (nSo publicado).
18 EZEQUIEL seguinte: acreditava que Ezequiel recebeu sua chamada inicial na Babilônia, não em Jerusalém, que envolveria um deslocamento grande demais do texto, mas que sua chamada era para ir à casa de Israel, o que fez ao empreender a viagem para Jerusalém descrita em 8: 3. Entre outros que adotam o conceito de um ministério duplo na Palestina e na Babilônia, há Pfeiffer,19 Wheeler Robinson,20 Auvray,21 eMay.22 Contra este ponto de vista, G. A. Cooke23 insistiu na interpretação mais tradicional, fornecida pelo texto bíblico, de uma localidade exclusivamente babilónica para o ministério de Ezequiel, explicando em bases psicológicas os problemas da consciência aguda que Ezequiel tinha dos eventos em Jerusalém e, mais especialmente, do estranho relato da morte de Pelatias (11:13). Durante muito tempo, a voz de Cooke ficou solitária, mas a monografia de Howíe, publicada em 1950,24 voltou com todo o entusiasmo para as conclusões tão geralmente aceitas no começo do século. Não se tratava de mero conservadorismo por amor a si mesmo, mas, sim, do resultado de um exame cuidadoso das teorias anteriores, que o levou à conclusão de que havia menos dificuldades em aceitar o ponto de vista tradicional do que em postular alterações editoriais extensivas do texto. Howie foi seguido em linhas gerais por vários comentaristas do pós-guena, tais como George Fohrer,25 Walter Zimmerli,26 Eichrodt,27 Muilenburg28 e Stalker,29 bem como por escritores tais como Orlinsky,30 Rowley31 e Eissfeldt.32 19. Robert H. Pfeiffer, Introduction to the Old Testament (1941). 20. H. Wheeler Robinson, Two Hebrew Prophets (1948), págs. 7 5 ,81ss. 21. P. Auvray, Ezéchiel (Témoins de Dieu, 1947). 22. IB, pág. 52. 23. Cooke, págs. xxiii-xxiv. 24. C. G. Howie, The Date and Composition o f Ezekiel (JBL Monograph Series IV, 1950). 25. G. Fohrer, Ezechiel (Handbuch zum Alten Testament, 1955). 26. W. Zimmerli, Ezechiel (Biblischer Kommentar, 1955 em diante). 27. W. Eichrodt, Der Prophet Hesekiel (Das Alte Testament Deutsch, 1959 e 1966). 28. Peake, págs. 568-9. 29. D. M. G. Stalker, Ezekiel (Torch Bible Commentaries, 1968). 30. Em BASOR, CXXII, 1951, págs. 34-36. 31. Rowley, Men o f God (1963), págs. 209-210. 32. Eissfeldt, pág. 372, comenta: “No que diz respeito ao período e à localidade do profeta, devemos ficar satisfeitos com a observação de que não há argumentos lealmente decisivos contra a fidedignidade da tradição que acha expressão em muitas passagens do livro.” 19 INTRODUÇÃO Muilenburg expressou suas conclusões nos seguintes termos: “Que o livro tem passado por uma história literária longa e complicada, dificilmente pode ser questionado, e fica aparente que representa uma compilação de tradições de grande diversidade. Mesmo assim, o peso da evidência parece cair a favor de um ponto de vista não muito diferente daquele que era sustentado por estudiosos de gerações anteriores. A considerável falta de concordância entre os resultados conseguidos pelos estudiosos recentes não inspira confiança na sua validez. Embora a presença de expansões e de suplementos possa muito bem ser admitida, mesmo neste caso a dificuldade é que as passsagens são tão semelhantes quanto ao estilo e ao conteúdo, que não se pode ter certeza absoluta do seu caráter secundário . .. Nossa conclusão, portanto, é que o livro como um todo provém dele.” 33 Este é o ponto de vista adotado no presente comentário. As tentativas no sentido de isolar a própria obra de Ezequiel daquela do seu redator foram evitadas por serem uma ocupação por demais incerta.34 A homogeneidade do livro inteiro é tal que nos inclinamos ao ponto de vista de que o profeta poderia, muito provavelmente, ter sido seu próprio redator. Muitos leitores, no entanto, consideram esta questão como pouco conseqüente, e vêem ao livro de Ezequiel ansiosos para compreender a mensagem do livro, e para ouvir a palavra do Senhor falando à sua própria geração, assim como falava aos judeus do século VI a.C. II.
EZEQUIEL, O HOMEM Ezequiel era o filho de Buzi; era um sacerdote, e provavelmente filho de um sacerdote.35 Foi levado para o cativeiro em 597 a.C., quando os exércitos de Nabucodonosor, rei da Babilônia, tomaram Jerusalém depois de um breve cerco. Com o jovem rei Joaquim e “todos os príncipes, todos os homens valentes, todos os artífices e ferreiros” (2 Rs 24:14), foi removido do Templo, que haveria de ser sua vida, e estabelecido nas planícies poeirentas da Babilônia. No quinto ano do seu exílio, i.é, 593 33. Peake, pág. 569. 34. Cf. S. Mowinckel,Prophecy and Tradition (1946), págs. 84-5. 35. O fato de que esta informação é achada em 1: 2 ,3 , a passagem na terceira pessoa do singular que pode muito bem ter sido uma interpolação editorial, nSo invalida, de modo algum, a veracidade destas declarações. Se não tivéssemos sido informados que Ezequiel era um sacerdote, quase certamente teríamos adivinhado que ele o era.
20 EZEQUIEL a.C., veio a ele a chamada de DEUS para exercer um ministério profético dirigido à casa de Israel. Se temos razão para pensar que o “trigésimo ano” referido em 1:1 era o seu trigésimo ano de idade, segue-se que Ezequiel era um homem jovem, com vinte e tantos anos, quando começou o exílio, e isto deixaria espaço para o período considerável de tempo durante o qual se estendeu seu ministério. A data mais avançada que é atribuída a um dos seus oráculos é o vigésimo-sétimo ano do exílio (29:17), e isto o levaria até à idade de 52 anos. Nada se sabe da sua vida à parte daquilo que é contido no livro que leva seu nome, nem existe tradição alguma que nos diga onde ou como morreu. Sabemos que era casado, e que sua esposa morreu na ocasião da queda de Jerusalém (24: 18). Era um homem de influência, sendo consultado pelos anciãos entre os exilados (8:1; 20:1); e embora isto talvez se deva ao seu ministério profético e à reputação que rapidamente adquiriu, é igualmente provável que seja atribuível à sua posição social herdada do seu pai, Buzi. À parte da sua visita visionária a Jerusalém (8:3-11:24), o único local com o qual Ezequiel tem conexões é, ou sua casa, ou a planície (ou “o vale” ; 3:22-23; 37:1), perto do rio Quebar num lugar chamado Tel Abibe. O rio Quebar tem sido tentativamente identificado com o naru kabarí, ou “grande rio,” referido em dois textos cuneiformes de Nipur. Era o nome dado a um canal de irrigação que trazia as águas do Eufrates numa volta para o sudeste, da Babilônia via Nipur, e de volta para o rio principal perto de Uruque (a Ereque bíblica). Seu nome moderno é Shatt en-Nil. Não se conhece nada acerca da geografia de Tel Abibe, a não ser que talvez represente Ac. til abübi (“cômoro de dilúvio”?). A primeira palavra é uma descrição comum dada a um cômoro que cobria os restos de uma sucessão de cidades enterradas (cf. Tel el-Amama, Tel es-Sultan, etc.), e uma comparação com Esdras 2: 59 (onde alguns dos exilados que voltavam eram provenientes de lugares tais como Tel-Melá e Tel-Harsa) sugere que os cativos judeus tinham recebido permissão para edificar suas comunidades de exílio em velhos sítios arruinados deste tipo, que até hoje estão espalhados pelas planícies da Babilônia. Quanto à casa de Ezequiel, podemos deduzir que era feita de tijolos de barro, típicos da localidade, e isto sugere um modo de vida razoavelmente estabelecido para os exilados.36 O profeta parece ter tido razoável liberdade de movimentos para 36. O tijolo mencionado em 4:1 era deste tipo, e a açío de escavar a parede em 12:5 sugere este tipo de construção. 21 INTRODUÇÃO entrar e sair à vontade, e a evidência da chegada do fugitivo (33:21) e da correspondência de Jeremias com os exilados (Jr 29) indica que a existência deles não era a de um campo de concentração. Deve ter havido restrições, mas a organização comunitária (i.é, a existência de anciãos, 8: 1; 20: 1), a agricultura, o culto e a instrução, o casamento e os vínculos de comunicação com Jerusalém eram todas permitidas. É quase certo que puderam visitar algumas das grandes cidades do país, das quais a principal era Babilônia com seus jardins suspensos mundialmente famosos, suas vastas fortificações e a magnífica Porta de Istar. Ezequiel deve ter visto os zigurates, ou templos-torres, com seus degraus, que relembravam a torre de Babel, e talvez tivesse consciência da sua semelhança formal com o grande altar com degraus no Templo de Salomão, que incorporou, com modificações muito leves, no seu próprio templo do futuro (43: 13-17; Fig. IV). Deve ter ficado consciente das estranhas criaturas compostas, semelhantes a esfinges, que eram retratadas em todo lugar, ou como divindades, ou como guardiãs dos deuses, e não é impossível que a vista destas tenha encorajado a sua imaginação, para pensar em termos semelhantes, quando descrevia as suas visões, embora nunca deva ser esquecido que seu treinamento sacerdotal do Templo de Jerusalém o teria levado a conhecer os querubins retratados ali. Sua impressão mais marcante, no entanto, deve ter sido a da combinação da idolatria excessiva e do esplendor mundano. A multiplicidade dos templos, a prosperidade incrível da cidade, a colméia de realizações e de cultura, tudo isto teria feito qualquer cativo hebreu sentir quão pequena era sua pátria e quão grandes eram os deuses de Nabucodonosor, que a tudo conquistavam. Mas uma vez que Ezequiel tinha tido sua visão da merkabah, do carro-trono de Javé, confirmando para ele que o DEUS de Jerusalém estava vivo e triunfante mesmo nesta terra pagã e politeísta da Babilônia, não é surpreendente descobrir que seu tema recorrente é a majestade do Senhor e que sua mensagem reiterada é que a casa de Israel, os exilados, as nações do mundo, até mesmo as forças das trevas, todos “saberão que eu sou o Senhor.” A julgar pela freqüência do uso desta expressão (mais de cinqüenta vezes ao todo), este alvo era a paixão consumidora de Ezequiel. Tudo isto pressupõe que o ministério de Ezequiel foi realizado na Babilônia. Contra este ponto de vista, os defensores de um ministério parcial ou total na Palestina, argumentam que seu conhecimento íntimo das idolatrias que estavam sendo praticadas no Templo (8:1-18), sua aparente confrontação com Pelatias (11:1-13) e sua consciência telepática de eventos tais como o começo do sítio de Jerusalém (24:2) e sua queda ul
22 EZEQUIEL terior (33:22), indicam que esteve pessoalmente em Jerusalém parte do tempo, ou até mesmo o tempo todo. Além disto, argumentariam que sua comissão era para a casa de Israel, que muitas das suas mensagens diziam respeito a Jerusalém (4: 1-5: 17) e que eram dirigidas ao povo de Jerusalém e de Judá(6:1-7:13; 16:3ss; 21: l-17;etc.), e que é difícil contemplar (nas palavras de Cooke), “um profeta na Babilônia lançando suas denúncias contra os habitantes de Jerusalém através de 1.100 km de deserto.37 Ninguém, no entanto, ainda insistiu que os oráculos de Ezequiel dirigidos às nações estrangeiras deveriam ter sido entregues no território dos amonitas ou no Tiro ou no Egito, e não há necessidade de supor que seus oráculos dirigidos a Jerusalém devam, portanto, ter sido entregues na cidade santa e não à frente dos exilados. Conforme Ellison38 indica com razão: “Ezequiel estava realmente profetizando acerca de Jerusalém mas não para Jerusalém.” Embora vários anos tivessem passado desde a ocasião da sua deportação, os exilados ainda viviam para Jerusalém e para o lar. Era o centro dos seus interesses e das suas esperanças; cada pedacinho de notícias que chegasse até a Babilônia era tratado como um grão de ouro em pó. À parte da duração da sua permanência no exílio, os eventos em Jerusalém eram o único fator supremamente relevante no pensamento deles. Seria deveras estranho se Ejsequiel não lhe desse o destaque que merecia no seu ministério aos exilados. Isto ainda não resolve o problema da visita de Ezequiel a Jerusalém, de modo semelhante a um êxtase. Aqui, porém, estamos enfrentando o problema da facilidade de comunicação entre a Babilônia e Jerusalém. É altamente improvável que Ezequiel tivesse tido licença para voltar do exílio para Jerusalém, e a sugestão de Bentzen39 de que a permissão talvez tivesse sido concedida, a fim de que Ezequiel pudesse ser usado como joguete da propaganda babilónica, pouca coisa tem para recomendá-la. Se for exigido um ambiente palestiniano para qualquer parte do ministério de Ezequiel, seria preferível argumentar que tal ministério deveria ter seguido uma chamada original na Palestina, e não na Babilônia. Mas postular uma chamada original na Palestina envolve muitos deslocamentos e rearranjos do texto conforme o temos nos capítulos 1-3. Um estudo dos esforços feitos pelos comentaristas para se37. Cooke, pág. xxiii. 38. Ellison, pág. 20. 39. Aage Bentze, Introduction to the Old Testament (1948), Vol. II, pág. 128. [Editado em português pela ASTE.] 23 INTRODUÇÃO parar dois fios literários distintos nos capítulos 1-3, sendo que um pertenceria a uma chamada original na Palestina, e o outro seria um novo comissionamento na Babilônia, bastará para convencer a maioria dos leitores de que a engenhosidade e as emendas necessárias para a tarefa condenam a teoria como sendo altamente implausível. E Orlinsky pergunta, de modo pertinente: “0 que Ezequiel (ou um redator) poderia ter esperado ganhar com a mudança da localidade da chamada inicial de Judá (se foi lá) para a Babilônia?”40 A pergunta de Orlinsky não recebeu uma resposta satisfatória, mas os expositores de um ministério duplo argumentam, do outro lado, que a teoria; deles oferece uma explicação melhor dos problemas associados com os poderes aparentemente telepáticos de Ezequiel. Ao presente escritor parece, no entanto, que aqueles que adotam este ponto de vista estão se esforçando demasiadamente para reduzir Ezequiel a um nível de completa normalidade. A anormalidade dalgum •tipo era um aspecto essencial do ministério carismático do profeta véterotestamentário. Ele tinha uma consciência incomparável de DEUS, seja a partir de uma experiência sobrenatural, visionária, que se constituía na sua chamada, seja a partir da consciência interior de ter uma mensagem de DEUS implantada na sua mente. Era um homem para o qual o milagroso não tinha surpresas, especialmente quando este tinha conexão com o cumprimento de palavras que falara sob constrangimento divino. Se os poderes extra-sensórios de Ezequiel tivessem operado com freqüência demasiada, ou tivessem sido ligados à vontade, poderíamos sentir alguma suspeita; dão, porém, a impressão de terem sido raros, memoráveis, e vinculados exclusivamente com eventos de importância crucial. Ao mesmo tempo, devemos precaver-nos contra uma avaliação exagerada destes poderes, porque boa parte dos conhecimentos que Ezequiel revela ter do estado das coisas em Jerusalém pode muito bem ter chegado a ele através dos canais normais de informações, mormente visto que ele teria sido um dos primeiros a receber notícias confidenciais acerca das questões do Templo.41 As “coincidências” verdadeiras parecem ser a morte de Pelatias (11:13) e o começo do cerco de Jerusalém (24:2). 0 caso de Pelatias está encaixado no contexto da visão de Ezequiel, em que se sentiu transportado para Jerusalém. Ainda na visão, vê vinte e cinco anciãos à entrada da porta oriental do Templo, e consegue identificar dois deles, Jaazanias, filho de Azur, e Pelatias, filho de Benaia. É 40. BASOR, CXII, 1951, pág. 35. 41. Note o uso da frase “veio a mim” em 3 3:21.
24 EZEQUIEL razoável supor que ambos eram bem conhecidos, conhecidos pelo nome por Ezequiel e pelos anciãos entre os exilados, em cuja presença diz-se que Ezequiel teve esta visão, e aos quais o profeta subseqüentemente descreveu tudo (11:25). Enquanto Ezequiel profetizava, Pelatias caiu morto. O texto não estipula que foi por causa das palavras de Ezequiel que ele morreu (como no caso de Ananias e Safira em At 5:5, 10), mas a coincidência foi suficiente para deixar Ezequiel chocado e amedrontado (11: 13b). A relevância deste evento é dupla. Primeiramente, é significante que Ezequiel tinha a capacidade de ter consciência de uma ocorrência notável, que se realizava a uma distância de centenas de quilômetros, no mesmo momento em que ele estava num tipo de êxtase em Tel-Abibe. Em segundo lugar, quando a notícia deste evento chegasse aos anciãos no exílio, seria uma confirmação poderosa dos poderes sobrenaturais de Ezequiel e autenticaria a ele e à sua mensagem aos olhos deles. A importância deste incidente não é, portanto, demonstrar que Ezequiel tinha o poder de fulminar um homem com uma única palavra a uma distância de 1.100 kms, conforme alguns interpretariam. Essa era a última coisa que Ezequiel desejava ou pretendia que acontecesse. Pelo contrário, ilustra sua consciência de um evento de importância que ocorria a uma grande distância e é, portanto, um paralelo exato com os outros exemplos deste mesmo poder em conexão com a cronologia do cerco e da queda de Jerusalém. Desejar negar a um profeta de DEUS exibições ocasionais de tal poder, demonstra uma falta de compreensão do poder do ESPÍRITO de DEUS num homem, e negar este poder a Ezequiel, entre todas as pessoas, é procurar fazer dele uma pessoa diferente do que era. Segundo o nosso modo de julgar, é igualmente errado procurar categorizar Ezequiel, especialmente a esta distância no tempo, em termos psicológicos modernos. Seu comportamento incomum e seus atos simbólicos altamente imaginativos têm sido explicados de várias maneiras. Stalker comenta: “Ezequiel tem sido chamado um cataléptico, um neurótico, uma vítima do histerismo, um psicopata, e até mesmo um esquizofrênico paranóico específico, além de ter sido creditado com poderes de clarividência e de levitação.”42 Transferir seu ministério para Jerusalém talvez remova o estigma dalgumffi destas acusações, mas não soluciona o problema de modo satisfatório, porque, conforme temos visto, levanta jnais problemas do que soluciona. Boa parte do comportamento “anormal” de Ezequiel é questão de interpretação. Logo de iní42. Stalker, pág. 23. 25 INTRODUÇÃO cio, conforme já observamos, um certo grau de “anormalidade” era normal para um profeta; era arrebatado em êxtase, e freqüentemente reforçava seus oráculos com atos dramáticos (cf. Zedequias, filho de Quenaaná, 1 Rs 22:11; e Jeremias, Jr 13:1-14; 19:10-13). Ezequiel também era um sacerdote por treinamento e criação, e, portanto, o simbolismo em grande escala era uma segunda natureza para ele, especialmente um simbolismo que combinava palavras e ações. Independentemente daquilo que pensamos acerca do aspecto estranho dalgumas das suas ações, acerca da sua tristeza silenciosa na ocasião da morte da sua esposa, da sua mudez, dos seus longos períodos deitado num só lado, impressiona-nos como sendq uma personalidade supremamente controlada, preso por um zelo apaixonado por DEUS, e não sujeito a alguma doença mental. “Ele é melhor compreendido,” escreve Howie, “como sendo uma alma humana sensível presa nas correntezas conflitantes da história, impulsionado por um zelo ardente por DEUS, dolorosamente consciente da tragédia em que seu povo estava envolvido.”43 Sua sensibilidade pode ser julgada pela breve descrição dos seus sentimentos pela sua esposa (24:15-18), pela sua petição sincera no sentido de DEUS poupar Seu povo e não destruí-lo completamente (9:8; 11:13), e pela ternura da sua descrição de DEUS como o Pastor das Suas ovelhas (34:11-16). Isto contrabalança a severidade de muitas das suas profecias de julgamento, e a fria lógica da sua insistência de que DEUS agirá “não por amor de vós . . . mas pelo meu santo nome” (36:22). Para Ezequiel, tudo tinha um significado. As ações que praticava, as palavras que usava, todas visavam uma finalidade. Sua mudez é típica de sua personalidade. Não poderia ter sido uma mudez literal, senão, teríamos de deslocar todos os oráculos que foram atribuídos a ele antes de 33:22. Certamente o redator da obra acabada não quis que interpretássemos desta maneira a sua mudez. A única alternativa é que era uma “mudez ritual,” a proibição imposta, e aceita de bom grado, de qualquer fala a não ser que se tratasse de um pronunciamento dado pelo Senhor. Compreendia assim, pode-se entender quanta consideração adicional seria atribuída às suas ações simbólicas e aos oráculos que as acompanhassem. Suas visões eram exemplos clássicos deste sentido simbólico. A visão inaugural do carro-trono continha significado em cada linha; boa parte dela não é compreendida por nós hoje, mas mesmo assim, o esboço geral ainda pode ser discernido. Procurava descrever o indescritível e dizer na linguagem da experiência espiritual algo acerca do DEUS que representava. A visão do no43. Howie, pág. 15. 26
EZEQUIEL vo templo, do outro lado, empregava o simbolismo sacerdotal para dizer o que este DEUS requeria dos Seus adoradores. É vinculada com conceitos de santidade, e com a exigência de ordem e perfeição, de reverência e simetria. Como escritor, Ezequiel é freqüentemente enfadonho e repetitivo.44 Certo número limitado de frases e temas ocorrem freqüentemente, e isto pode ser desanimador para os leitores modernos que não têm familiaridade com as antigas convenções literárias. Ocasionalmente, emprega poesia, mas na maior parte escreve prosa; não uma prosa pitoresca e descritiva, mas, sim, uma prosa sombria e profética, com cadência, mas sem métrica discemível. Quando recita uma poesia, é freqüentemente uma elegia ou lamentação (Hb qinâ\ veja a nota sobre 19:1), uma poesia escrita no ritmo pesaroso de 3:2. Às vezes, colhe um fragmento de um cântico, tal como o cântico da èspada (21:9, 10) ou o cântico da panela (24:3-5), e os interpreta da sua própria maneira. Revela ter uma imaginação vívida na sua lamentação sobre os reis de Israel (19:1-14), e na sua descrição do naufrágio do navio Tiro (27:3-9, 25-36), bem como na visão do vale dos ossos secos (37:1-10), mas noutras ocasiões demonstra uma notável falta de imaginação. A única coisa que não lhe falta é uma paixão intensa para com DEUS, para com sua mensagem, e para com seus ouvintes. Tudo era subordinado ao seu senso quase esmagador de obrigação e responsabilidade. Era um atalaia, e se deixasse de advertir seu povo, o sangue deste recairia sobre ele. Com esta finalidade em mira, estava disposto a auscultar a disposição de espírito que prevalecia entre os exilados e a responder às objeções deles. Retomava provérbios populares (11:3; 12:22, 27; 18:2) e demonstrava que não tinham validade alguma. Respondia ao atordoamento inexpressado que estava no coração dos homens (18:19, 25; 20:32). Em síntese, combinava de maneira sem igual o senso que o sacerdote tem da santidade de DEUS, o senso que o profeta tem da mensagem com que foi confiado, e o senso que o pastor tem da sua responsabilidade para com seu povo. 44. Exemplos de frases freqüentemente usadas por Ezequiel numa variedade de formas são: “saberão que eu sou o SENHOR” (66 vezes); “vindicarei a santidade do meu grande nome” (8 vezes); “eu (o SENHOR) falei (e eu o farei)” (49 vezes); “assim como eu vivo, diz o SENHOR” (15 vezes); “os espalharei entre as nações, e os derramarei pelas terras” (9 vezes); “vos congregarei das terras . . . (10 vezes); “derramarei minha ira (satifarei minha furia) sobre vós” (16 vezes); “veio a mim a palavra do SENHOR” (49 vezes); “pelo . . . por isso . . . ” (37 vezes). 27 INTRODUÇÃO ffl. O FUNDO HISTÓRICO O primeiro período da vida de Ezequiel testemunhou o fim do domínio do Império Assírio, um breve período interino da influência egípcia nos negócios de Judá, e depois, o crescente controle dos reis da Babilônia sobre a política do Oriente Próximo. Os reis de Judá em cujo reinado Ezequiel viveu foram: Josias 640-609 a.C. Jeoacaz 609 a.C. Jeoaquim 609-597 a.C. Joaquim 597 a.C. Zedequias 597-587 a.C. O programa extensivo que Josias realizou, de consertos no Templo e de reformas religiosas, é bem conhecido a todo leitor do Antigo Testamento (2 Rs 22:1-23: 30; 2 Cr 34: 35). Seu reinado foi uma marca divisória no desenvolvimento espiritual de Judá. Embora suas reformas fossem baseadas na descoberta do livro da lei durante as obras de reconstrução no Templo (quase certamente se tratava de Deuteronômio, completo ou em parte), sua liberdade para levá-las a efeito devia-se parcialmente às considerações políticas. No Oriente Próximo antigo, a vassalagem freqüentemente envolvia a parte inferior numa obrigação de aceitar a adoração aos deuses do suserano, bem como o pagamento de tributos ou outros impostos. Destarte, o culto às divindades astrais ou o levantamento de ídolos pelos reis anteriores de Judá freqüentemente eram sinais de submissão à autoridade assíria. A reforma religiosa, portanto, não era simplesmente um ato interno, nascido do despertamento espiritual, mas também poderia ser interpretada como um movimento de rebelião contra o domínio de um aliado poderoso. Foi o fato da influência da Assíria enfraquecerse que deixou Josias levar a efeito as reformas que, tanto seus próprios desejos, quanto a descoberta do rolo tão longamente negligenciado, o encorajavam a realizar. O colapso da Assíria pode ser datado pela queda de Nínive em 612 a.C., e a supremacia da Babilônia foi garantida sete anos mais tarde, quando Nabucodonosor derrotou de modo esmagador o exército do Egito em Carquemis, no Eufrates, em 605 a.C. Entre estas datas ocorreu a morte misteriosa do malfadado Josias às mãos do Faraó Neco II do Egito. Muitas traduções bíblicas (2 Rs 22:29) sugerem que Neco iria lutar
28 EZEQUIEL contra a Assíria, e é um mistério por que Josias desejaria se opor a ele a favor da Assíria. Sabemos, porém, pela Crônica Babilónica,45 que o Egito estava indo socorrer a Assíria contra a ameaça babilónica [a palavra hebraica traduzida “para” pode ser intepretada “contra” ou “a favor de”, daí a tradução bíblica depender doutras informações. N.Tr.]. Agora, o problema muda: por que Josias tomou uma posição aparentemente pró-Babilônia? É improvável que já estivesse em aliança com a Babilônia, de modo que somente podemos supor que ele sentisse que uma vitória egípcia faria mais danos a Judá, em última análise, do que uma vitória babilónica. De qualquer modo, sua ação suicida lhe custou a vida, e Jeoacaz, seu filho (também chamado Salum), ficou sendo rei no seu lugar. A campanha de Neco contra a Babilônia foi mal-sucedida e, portanto, numa tentativa de estabelecer seu domínio sobre a Síria e a Palestina, mandou deportar Jeoacaz para o Egito depois de um reinado de apenas três meses,46 e colocou no seu lugar seu irmão, Eliaquim. Ao mesmo tempo, demonstrou sua autoridade e a condição de vassalo de Eliaquim ao dar-lhe o nome oficial, como rei, de Jeoaquim, e ao impor um fardo pesado de tributo sobre a terra (2 Rs 23:31-35). Jeoaquim foi um governante totalmente irresponsável no que dizia respeito às necessidades do seu povo, e mereceu o total desprezo de Jeremias, especialmente por seus planos grandiosos para reformas no palácio e pela imposição de trabalhos forçados para levá-las a efeito (ver Jr 22:13- 19). As reformas religiosas de Josias tomaram-se sem efeito, sem dúvida parcialmente por causa da morte trágica daquele bom rei, que, decerto, parecia a muitas pessoas uma contradição da fé que defendia, e todos os tipos de práticas idólatras entraram paulatinamente na vida de Jerusalém. Os cultos pagãos referidos por Ezequiel em 8:1-18 não passaram da continuação de um movimento que começou com a ascensão de Jeoaquim. No quarto ano de Jeoaquim, o exército de Neco, que tinha mantido vigilância cautelosa nas fronteiras do norte da Síria, perto de Carquemis, foi completamente esmagado, primeiramente em Carquemis (605 a.C.) e depois, outra vez, enquanto estava em plena retirada, em Hamate. Pouco depois, Jeoaquim veio a ser tributário de Nacubodonosor (2 Rs 24:1), 45. A Crônica Babilónica é um relato fidedigno, factual, dos anais do Império Babilónico desde 626 até 539 a.C. As partes atualmente existentes abrangem os anos 626-622, 610-594, 556, 555-539 a.C., e freqüentemente lançam luz sobre a cronologia do Antigo Testamento. Algumas seções relevantes se acham em DOTT, págs. 75-83. 46. Para uma elegia sobre Jeoacaz, ver Jr 22:10-12 ;Ez 1 9:24 . 29 INTRODUÇÃO mas diante do primeiro sinal de fraqueza da parte dos babilônios (uma batalha indecisiva entre Neco e Nabucodonosor em 601 a.C. levou este último a voltar para casa a fim de reorganizar seu exército), o rei judeu rebelou-se. Foi-lhe permitido apenas um período temporário de folga. Enquanto Nabucodonosor estava muito ocupado tratando de outros problemas, enviou contingentes menores das suas forças, juntamente com bandos incursores dos seus vassalos sírios, amonitas e moabitas (2 Rs 24:2; Jr 35:11), para pilhar Judá. Depois, em dezembro de 598 a.C., avançou com todo o seu exército contra Jerusalém. Ao mesmo tempo, Jeoaquim morreu, possivelmente assassinado,47 e seu filho de dezoito anos, Joaquim (também chamado Conias ou Jeconias, Jr 22:24, 28; 1 Cr 3:16), teve de escolher entre a resistência ou a capitulação. A ajuda esperada da parte do Egito deixou de concretizar-se (2 Rs 24: 7) e, depois de um sítio de três meses, o jovem rei entregou-se no segundo dia de Adar de 597 a.C., i.é, 16 de março. Juntamente com a rainha-mãe e os palacianos, e todos principais cidadãos da terra (os príncipes, todos os homens valentes, todos os artífices e ferreiros, são mencionados especificamente; 2 Rs 24:14), foi levado para o cativeiro na Babilônia onde, segundo parece, viveu o decurso normal da vida. Há somente uma outra referência a ele, em 2 Rs 25: 27-30, que completou o relato da monarquia ao acrescentar que no trigésimo sétimo ano do seu exílio, no ano da ascensão de Evil-Merodaque, rei da Babilônia (i.é, Amel-Marduque, 562-560 a.C.), foi liberto do cárcere, ou da prisão domiciliar, mais provavelmente, e ficou sendo um pensionista vitalício à mesa do rei. Um notável raio de luz foi lançado sobre o cativeiro de Joaquim pela descoberta, feita por R. Koldewey, de grande número de tábuas cuneiformes armazenadas nas adegas subterrâneas palacianas da Babilônia, não muito longe da Porta de Istar. Pareciam ser registros de rações de azeite e cevada distribuídas aos prisioneiros pelo administrador principal. Embora fossem descobertas no começo do século e trazidas para o Museu Kaiser Friedrich em Berlim, foi somente em meados da década de 1930 que um assiriólogo, E. F. Weidner, começou a lê-las e traduzi-las. No decurso do seu trabalho, achou o nome Ya’u-kinu, Joaquim, e a identificação foi confirmada pela descrição “rei da terra de Yahudu.” A tábua de 47. Jeoaquim morreu antes dos exércitos babilónicos chegaxem a Jerusalém, e a declaração em 2 Cr 36: 6 pode indicar que foi seqüestrado por um partido próBabilônia. 48. Para uma tradução e avaliação, ver DOTT, págs. 84-86.
30 EZEQUIEL rações transmite poucas informações por si só,48 mas a relevância acha-se na descrição de Joaquim como um rei. Aparentemente, ainda era considerado pela administração babilónica como o legítimo titular do trono, e Zedequias era considerado apenas como um regente temporário. Se assim for (e uma das tábuas que mencionam o nome de Joaquim pode ser datada em 592 a.C.,49 i.é, no tempo de Zedequias), dá motivos adicionais para a expectativa confiante dos exilados de que a volta dele para Judá, e a repatriação deles, era iminente.50 Ajuda-nos, também, a compreender porque Ezequiel, embora não participasse do otimismo dos exilados, rejeitava a realeza de Zedequias, evitava escrupulosamente a atribuição a ele do título de rei (rnélek), e datava todos os seus oráculos segundo o exílio do “Rei Joaquim” (assim descrito em 1:12). Lá em Judá, Zedequias, irmão de Joaquim, que fora nomeado rei-títere em Jerusalém, era um fraco, e totalmente incapaz de enfrentar as correntezas políticas cruzadas do seu tempo. Embora tivesse sido nomeado pelos babilônios, e devesse lealdade a Nabucodonosor, havia influências poderosas pró-egípcias que o encorajavam a rebelar-se. Um dos seus conselheiros era Jeremias, cuja defesa de umá política de submissão à Babilônia granjeou-lhe muito ódio entre o povo. Zedequias procurava protegê-lo, mas a descrição dos seus esforços, feita em Jeremias 37 e 38, indica que o poder real ficava com o partido pró-guerra, e que o poder do rei era severamente limitado. Uma crise política ocorreu cedo no seu reinado quando houve, aparentemente, um movimento da parte dos vizinhos de Judá (Moabe, Edom, Amom, Tiro e Sidom estavam envolvidos)51 para unir-se em rebelião contra Nabucodonosor, mas Jeremias opôs-se fortemente a isto, e parece que veio a dar em nada.52 Finalmente, no entanto, o entusiasmo público pela revolta foi atiçado pelos exaltados políticos, e com o apoio do faraó do Egito, Psamético II (593-588 a.C.), Zedequias, um pouco contra sua vontade, deu o salto mortal.53 49. W. F. Albright, “King Joiachin in Exüe” , BA, V, 1942, págs. 49-55. 50. Esta expectativa também era acalentada em Jerusalém, e era alimentada pelas palavras de profetas tais como Hananias (Jr 2 8:14). 51. Jr 2 7:2ss. 52. A rebelião pode muito bem ter sido fomentada por notícias da revolta na Babilônia em 5954 a.C., em que muitas das tropas de Nabucodonosor tiveram de ser executadas antes dela finalmente poder ser esmagada. Se assim for o caso, a visita de Zedequias à Babilônia em 594-3 a.C. (Jr 51:59) pode ter tido a finalidade de aliviar suspeitas e de afirmar sua lealdade pessoal ao rei. 53. O único outro país que apoiou a revolta foi Tiro, e é digno de nota que 31 INTRODUÇÃO A retaliação foi rápida. Já em janeiro de 588 a.C. o exército da Babilônia estava às portas de Jerusalém, e dentro em breve, somente Laquis e Azeká, de toda as cidades fortificadas de Judá, ainda estavam resistindo. Numa coleção de cartas, escritas para o comandante da guarnição em Laquis, e também escritas da parte deste, e descobertas ali em 1935, a queda de Azeká é descrita vlvidamente.54 No verão de 588, a aproximação de um exército egípcio provocou um levantamento temporário do cerco de Jerusalém, mas logo foi afugentado e o cerco recomeçou.“ Em julho de 587 os muros foram rompidos numa parte, e Zedequias aproveitou a oportunidade para escapar, mas foi apanhado perto de Jericó e levado prisioneiro para Riblá, o quartel-general de Nabucodonosor para esta campanha. Seu castigo foi ter de ver seus filhos trucidados, e depois ter os olhos vazados, para, então, ser levado acorrentado à Babilônia, onde morreu. Um mês mais tarde, Jerusalém foi reduzida a chamas, com o acompanhamento de mais execuções de líderes civis e militares, e de mais uma deportação para a Babilônia. 0 pouco que sobrou de Judá foi incorporado numa província babilónica, e um membro do gabinete de Zedequias, Gedalias, foi nomeado governador. Posto que o pai deste, Aicão, certa vez salvara a vida de Jeremias (Jr 26:4), não é impossível que Gedalias, também, fosse amigo de Jeremias e o tenha apoiado na sua política de aplacar a Babilônia. Isto explicaria sua nomeação para seu novo cargo, mas era considerado por muitas pessoas como um colaborador do inimigo e, dentro de pouco tempo (pode ter sido poucos meses ou poucos anos) foi assassinado em Mispa por um grupo de homens liderados por Ismael, um membro da família real. Este foi o sinal para um êxodo geral de Judá, provavelmente por causa do temor da represália; e, muito contra a sua vontade, Jeremias foi levaas condenações mais fortes de Ezequiel foram dirigidas contra o Egito e Tiro (Ez 26-32). A satisfação maligna com a queda de Jerusalém, que Ezequiel atribuía a Amom, a Moabe, a Edom e à Filístia (Ez 25), talvez seja um indício de que estes países ou se retiraram da aliança rebelde, ou até mesmo tomaram ativamente partido com Nabucodonosor quando perceberam a direção que os eventos estavam tomando. 54. Estas cartas oferecem registros contemporâneos fascinantes dos eventos em Judá neste período, e devem ser lidas em DOTT, págs 212-217. Na sua preleçío “Tyndale”, The Prophet in the Lachish Ostraca (1946), o Professor D. Winton Thomas discute as evidências em prol de identificar com Jeremias o profeta referido nas cartas. 55. Ver a advertência de Jeremias quanto a isto, em 37:5-10. 32
EZEQUIEL do junto com estes imigrantes políticos para o Egito, onde terminou seus dias (Jr 4044). Antes de procurar encaixar a cronologia de Ezequiel neste panorama histórico, vale a pena fazer a pergunta: por que Jeremias e Ezequiel não fazem referência explícita um ao outro? Embora fossem separados por uma grande distância, os dois eram homens de destaque na mesma esfera da religião profética, tratavam de temas semelhantes, e freqüentemente seus ensinos coincidiam ou se encaixavam de modo bem notável. Alguns sugeriram que os dois homens se opunham um ao outro, que Jeremias classificava Ezequiel com os profetas no exílio, tais como Acabe, filho de Colaías, e Zedequias, filho de Maaséias, aos quais condenou severamente em 29:15, 20-23, e que a crítica de Ezequiel aos líderes em Jerusalém ocultava uma alusão a Jeremias. Mas há falta total de evidência em prol disto. Não é necessário que a falta de dois profetas contemporâneos mencionarem um ao outro pelo nome cause surpresa: Amós e Oséias, Isaías e Miquéias, Ageu e Zacarias, são outros exemplos de silêncio sem qualquer animosidade subentendida. Ao presente escritor parece que estes dois profetas do exílio revelam seu conhecimento um do outro com numerosas alusões ao ensino do outro, ou, pelo menos, aos mesmos temas que ocupam a atenção do outro. Os dois, aparentemente, estavam tomando uma posição solitária em prol da verdade: um deles em Jerusalém, e o outro na Babilônia: os dois insistiam que o futuro de Israel achava-se com os exilados e não com aqueles que foram deixados para trás em Jerusalém; os dois rejeitavam o fatalismo daqueles que citavam o provérbio acerca dos pais que comeram uvas verdes e os dentes dos filhos que foram embotados; os dois censuravam os pastores de Israel que deixavam de cuidar do rebanho; os dois enfatizavam o princípio da retribuição individual e a necessidade do arrependimento individual; os dois previam um exílio prolongado, seguido pela restauração sob uma liderança piedosa; os dois falavam em termos de uma nova aliança que seria apropriada intema e pessoalmente; e os dois falavam contra os falsos profetas que profetizavam a paz quando não havia paz. Estes paralelos e semelhanças entre Jeremias e Ezequiel não respondem à pergunta que foi originalmente feita, mas sugerem, isto sim, que os dois homens quase certamente tinham consciência da existência um do outro, e provavelmente tinham simpatia um com o outro. Se, naturalmente, um ambiente palestiniano para o ministério de Ezequiel fosse postulado, o problema da sua falta de menção um do outro, enquanto viviam e pregavam como vizinhos próximos entre si, seria consideravelmente agravado, 33 INTRODUÇÃO mas já rejeitamos tal possibilidade, por outros motivos. Finalmente, devemos lembrar-nos de que, embora conheçamos pelo nome somente estas duas grandes personalidades proféticas do exílio, juntamente com os nomes de umas poucas figuras obscuras tais como Urias (Jr 26:20-23) e Hananias (Jr 28:1-17), deve ter havido dezenas de homens em Israel que diziam ser profetas, e nem sempre teria sido fácil para os verdadeiros serem distinguidos dos falsos. Entre tais profetas havia, sem dúvida, uns poucos do calibre de Urias, mas muitos outros devem ter sido do tipo de Hananias, contra quem foram dirigidos capítulos tais como Jeremias 23 e Ezequiel 13. Devemos, portanto, acautelar-nos contra tirar conclusões indevidas a partir de evidências mínimas, e devemos ter cuidado, ademais, em evitar a fabricação de grandes problemas a partir de casos sobre os quais a Bíblia não parece ter comentário algum a fazer. A cronologia de Ezequiel Ezequiel é sem igual entre os profetas do Antigo Testamento pela sua seqüência ordeira de datas para muitos dos seus oráculos. Estas datas podem ser alistadas no seguinte quadro. Referência Evento descrito DatadeEze- Data pelo calenq u ie f6 ddrio JulianoS7 Dia mês ano Dia mês ano 1: A chamada de Ezequiel 5 4 30 31 jul 593 1: 2 A chamada de Ezequiel 5 (4) 5 >> ” 8: 1 A visão da idolatria em Jerusalém 5 6 6 17 set 592 20 1 A delegação dos anciãos 10 5 7 9 ago 591 24 1 Começa o cerco 10 10 9 15 jan 588 26 1 Oráculo contra Tiro 1 (11) 11 12 fev 586 29 1 Oráculo contra o Egito 12 10 10 7 jan 587 29 17 Do Tiro para o Egito 1 1 27 26 abr 571 30 20 0 braço quebrado do Faraó 7 1 11 29 abr 587 31 1 Oráculo contra o Faraó 1 3 11 21 jun 587 32 1 Lamentação sobre o Faraó 1 12 12 3 mar 585 32 17 0 Faraó no Seol 15 (12) 12 17 mar 585 33 21 “A cidade caiu” 5 10 12 8 jan 585 (ou melhor) (5 10 U ) 19 jan 586 40:1 Visão da nova Jerusalém 10 1* 25 28 abr 573 * lit. “no começo do ano” 56. As datas entre parênteses são aquelas que foram supostas no comentário onde o TM não é explícito, ou onde ocorrem variantes. 57. Estas datas baseiam-se nas tabelas dadas em R. A. Parker e W. H. Du34 EZEQUIEL
Pode-se ver, com base neste gráfico que, se descontarmos a coleção de oráculos contra as nações (25-32), que incorpora nada menos do que sete das quatorze datas, as demais datas estão numa ordem exata e lógica. Isto é verdade, quer sigamos o TM da notícia da queda de Jerusalém (33:21), quer emendemos “o ano duodécimo” para “o ano undécimo,” conforme parece preferível (seguindo Albrigth, Howie). Das datas nos capítulos 25-32, duas não fazem menção ao mês (26:1; 32:17), mas o oráculo que segue 26:1 pressupõe que Jerusalém caiu e, portanto, deve ser datado depois da data citada em 33:21, e a sugestão no sentido de preencher o undécimo mês não parece irrazoável. Isto faz com que o oráculo contra Tiro venha menos do que um mês depois da notícia da queda de Jerusalém ter chegado em Tel Abibe. Os oráculos contra o Egito estão em seqüência cronológica, com a exceção de 29:17 que é manifestamente uma explicação posterior encaixada deliberadamente naquela altura da seqüência, e de 32:17, embora se o mês omitido for entendido como sendo o duodécimo, este, também, encaixa-se no padrão ordeiro. O problema que ainda fica é a interpretação do trigésimo ano em 1:1. Muitos estudiosos apelaram a emendas textuais, sendo que a mais conhecida é a de Hemtrich,58 que o emendou para o terceiro ano, e ele foi seguido mais recentemente por C. F. Whitley.59 A sugestão de Bertholet de que deva ser emendado para o décimo terceiro ano, em que foi seguido por Auvray e Steinmann,60 tem relacionamento com sua reformulação do ministério de Ezequiel, de modo que a visão marcasse a inauguração do segundo período (babilónico), mas foi fortemente refutada tanto por Fohrer como por Zimmerli. Aqueles que procuraram compreender o texto conforme consta têm sugerido: (i) que era o trigésimo ano após a reforma de Josias, i.é, c. de 591 a.C.; (ii) que era o trigésimo ano da idade de Ezequiel, idéia esta que remonta a Orígenes; (iii) que era o trigésimo ano do exílio de Joaquim, e que a referência não dizia respeito à visão inaugural bberstein, Babylonian Chronology, 626 a.C. - 75 d.C. (1956), pág. 26. Não devem ser usadas por demais dogmaticamente, porque tomam por certas questões acerca das quais há mais de uma interpretação. Por exemplo, nffo podemos ter certeza se Ezequiel seguiu um calendário que ia de um outono até ao outono seguinte, ou da primavera até à primavera seguinte. As datas citadas supra supõem que se trata de um calendário primaveril. 58. Hemtrich, pág. 63. 59. C. F. Whitley, “The ‘thirtieth’ year in Ezekiel 1:1,” VT, IX, 1959, págs. 326-330. 60. J. Steinmann, Le prophète Ezéchiel et les débuts de I’exil (1953). 35 INTRODUÇÃO de Ezequiel, mas, sim, à data da redação ou compilação final do livro inteiro (assim Beriy,61 Browne,62 Albright,63 e Howie). A primeira destas sugestões pode ser descontada porque não há evidência em prol de qualquer datação semelhante de um evento, por mais importante que seja, sem referência específica ser feita a ele. A menção do reinado do rei Joaquim em 1:2 indica que se o trigésimo ano após a reforma de Josias estava em mira, o redator não percebeu o sentido, e se ele não conseguiu entendê-lo ficamos duvidando se qualquer leitor contemporâneo teria sido mais bem sucedido.64 Os argumentos em prol da teoria do “ano da compilação” são atraentes e se encaixam bem com o padrão posterior de datas, viz. o vigésimo quinto ano para a visão de 4048, e o vigésimo sétimo ano para a predição do avanço de Nabucodonosor contra o Egito após seu fracasso em Tiro. Não havendo qualquer ponto de referência no texto, parece altamente razoável inferir o mesmo ponto de referência que é aplicado a todas as demais datas no livro. Os argumentos em prol desta interpretação são bem colocados na monografia de Howie.6S Do outro lado, exigem uma leve recomposição dos w. 1-3 de Ezequiel 1, e rejeitam o esforço do redator para fazer uma harmonização na sua referência ao quinto ano de Joaquim em 1:2. Se Howie tiver razão, o redator não poderia ter sido o próprio Ezequiel (conforme ele supõe), porque a confusão das datas nos w. 1 e 2 teria sido demasiadamente aparente para uma compilador inteligente permitir. Conforme foi transmitido para nós, 1:2 não pode ser outra coisa senão uma glosa explanatória sobre a dats desvinculada em 1:1 e, além disto, o problema de 1:1 deve ter sido tio completamente reconhecido pelo redator que nem sequer lhe ocorreu que se referisse à compilação dos oráculos de Ezequiel no trigésimo ano do exílio de Joaquim. Para o redator, de qualquer maneira (e não podemos chegar mais perto das 61. JBL, LI, 1932, pág. 55. 62. L. E. Browne, Ezekiel and Alexander (1952), pág. 10; mas interpreta o livro inteiro como um comentário dos fins do século IV a.C., sobre as campanhas de Alexandre, e o trigésimo ano é datado a partir da sucessão de Artaxerxes III. 63. JBL, LI, 1932, pág. 96. 64. A mesma objeção também deve ser aplicada a variantes desta teoria, e.g. que era o trigésimo ano da vida de Joaquim (Snaith, ET, LIX, 194748, págs. 315-6); ou do reinado de Manasse's (C. C. Torrey, Pseudo-Ezekiel and the Original Prophecy (1930), págs. 634); ou de um período do jubileu (S. Fisch, Ezekiel, Soncino Bible, 1950, pág. 1). 65. C. G. Howie, The Date and Composition o f Ezekiel (JBL Monograph Series IV, 1950).
36 EZEQUIEL fontes do que ele), o trigésimo e o quinto ano do exílio eram o mesmo ano. Ficamos, portanto, com as seguintes possibilidades: ou que estas cifras representam dois sistemas alternativos de datas,66 idéia esta que atraiu pouco, ou nenhum, apoio dos especialistas atuais na cronologia vétero-testamentária, ou que o trigésimo ano era o trigésimo ano de Ezequiel. Muita coisa há que se possa dizer em prol desta última idéia. Primeiramente, é prima facie mais provável que, quando uma reminiscência pessoal está sendo registrada na primeira pessoa do singular, qualquer referência a um ano específico, a não ser que haja explicação em contrário, significaria o ano da idade do escritor. Em segundo lugar, há a evidência de Gênesis 8:13 no sentido de que esta era uma forma aceitável de expressão hebraica.67 Em terceiro lugar, há boa razão para se supor que o trigésimo ano da vida de um homem era a idade em que podia assumir todos os deveres do sacerdócio. Este argumento baseia-se no fato de ser esta a situação dos levitas, conforme Números 4:3 e 1 Crônicas 23:3, embora houvesse etapas de treinamento preliminar para a obra, a partir do vigésimo68 e do vigésimo quinto ano.69 A evidência do judaísmo posterior mantém um silêncio estranho quanto ao assunto da idade da iniciação no sacerdócio, mas trinta anos volta a ocorrer como a idade de plena maturidáde, e não dexia de ter significado o fato de que trinta anos era a idade de nosso Senhor na ocasião do Seu batismo e do começo do Seu ministério.70 Se assim for, o significado do seu trigésimo ano, na introdução autobiográfica de Ezequiel, não passaria desapercebido aos seus leitores, e algo do aspecto patético das suas esperanças frustradas de servir no Templo apareceria. Pode, portanto, ser suposto que foi como compensação pela sua perda de privilégio, por causa do exílio, que o Senhor chamou Ezequiel para o ministério de profeta e atalaia no quinto ano do rei Joaquim. 66. Assim Cooke, págs. 3-4, seguindo Begrich. 67. “No primeiro dia do primeiro mês, do ano seiscentos e um, as águas se secaram de sobre a terra.” A referência é à vida de Noé, conforme 7:6 e 7: 11 tomam claro. Devo esta referência a S. G. Taylor, Tyndale Bulletin, 17,1966, págs. 119-120. 68. 1 Cr 23:24. 69. Nm 8:24. 70. Lc 3:23. 37 INTRODUÇÃO 0 impacto total de um livro é freqüentemente muito maior do que a mensagem pretendida pelo autor, e, da mesma forma, a mensagem que o livro de Ezequiel contribui à revelação de DEUS nas Escrituras Sagradas é muito maior do que as meras palavras de Ezequiel dirigidas a seus companheiros de exílio. Se não tivéssemos de lidar com nada mais do que isso, poderíamos resumir o ensino de Ezequiel em duas frases: DEUS destruirá e, depois de 587 a.C., DEUS restaurará e reconstruirá. Mas para relacionar isto com as necessidades dos homens e das nações hoje, conforme é a tarefa da exposição bíblica, devemos olhar abaixo da süperfície, nos princípios subjacentes da natureza de DEUS e dos Seus tratos com os homens, que o profeta reconheceu e aplicou, à sua maneira, às situações dos seus próprios tempos. O profeta vétero-testamentário, pois, era essencialmente um intérprete, aplicando o que sabia da natureza e das leis de DEUS às condições sociais, políticas e religiosas dos seus dias. A tarefa dele, portanto, era arriscada. Tinha de pesar os fatos e tirar as conclusões certas. Tinha de falar com destemor, sabendo que muito provavelmente sofreria oposição ou seria mal entendido. Tinha de falar alto, e de modo memorável, porque seus problemas de comunicação eram muito maiores do que os nossos hoje. Acima de tudo, tendo poucos precedentes como base, e nenhuma Bíblia atrás da qual pudesse esconder-se, tinha de ter dupla certeza de que as palavras que falava não eram dele, mas, sim, dAquele que o enviara. E tinha de fazer tudo isto no meio-ambiente das palavras doutros homens que professavam ser profetas, mas cujos oráculos eram uma ladainha sem a autoridade derivada de terem experimentado a palavra de DEUS dentro de si mesmos. Uma boa parte da linguagem de Ezequiel é repeticiosa. Isto às vezes toma a leitura enfadonha, mas ajuda a ressaltar seus temas recorrentes. Cinco destes foram escolhidos para serem comentados aqui. Como as estrelas que perfazem uma consteláção, são os pontos fixos em derredor dos quais o padrão da sua mensagem pode ser construído. a. A Transcendência de DEUS Toda profecia começa com o caráter do DEUS que a inspira. No caso de Ezequiel, que foi criado nos círculos sacerdotais em Jerusalém, é inevitável que o aspecto de DEUS que ele sentia mais profundamente era Sua santidade. Esta não era uma qualidade moral, embora pudesse mostrar
IV. A MENSAGEM DE EZEQUIEL
38 EZEQUIEL se em ações morais, e fazia assim mesmo (cf. Is 5 :16b). Era uma palavra que expressava relacionamento. O significado da raiz de qõdes (“santidade”) é “estar separado” , e assim, ser desligado doutros relacionamentos e usos comuns para cumprir uma função peculiar, uma que pertence a DEUS, o SANTO. O DEUS de Israel não possuía, simplesmente, esta qualidade; Ele era esta qualidade. Tudo quanto tinha ligação com Ele derivava dEle a santidade. Podia, portanto, haver um lugar santo onde Ele era adorado, pessoas santas que agiam como Seus ministros, vestes santas que usavam e equipamentos santos que empregavam. Seu nome também era santo, Seu povo Israel era santo (até quando estava vivendo na injustiça), e o lugar onde fez Sua habitação era Seu santo monte. A visão do Senhor montado no Seu carro-trono (1-3) tipificava este senso de transcendência e de majestade. Era indizivelmente esplêndido, misteriosamente intrincado, sobre-humano e sobrenatural, infinitamente móvel mas nunca preso à terra, onividente e onisciente. É assim que DEUS Se revelou a Ezequiel, não por proposições acerca do Seu caráter mas, sim, no encontro pessoal. Os rabinos que insistiam que ninguém abaixo da idade de trinta anos deveria ler esta parte do livro de Ezequiel, estavam conscientes de que aqui estavam em terra santa. Ezequiel tinha a mesma consciência. Como Simão Pedro ao ser confrontado pela capacidade sobrenatural de JESUS (Lc 5:8), somente podia cair com o rosto em terra como morto. Este foi o contexto da sua comissão para profetizar, e a partir de então, levou consigo, no decorrer da totalidade do seu ministério, um senso de reverência e de santo temor. É a marca distintiva do profeta verdadeiro em cada geração. O falso profeta pode tagarelar levianamente acerca de DEUS, porque nunca se encontrou com Ele. O homem de DEUS sai da Sua presença indelevelmente marcado com a glória do seu Senhor. Ezequiel deve ter sabido que o DEUS de Israel era o DEUS do mundo inteiro, como seu Criador e Sustentador. Suas tradições sacerdotais ensinaram-no, decerto, que Ele era o DEUS de todas as nações, e o Juiz delas. Mas, mesmo assim, deve ter sido um grande consolo para ele, e para os exilados, saber que este DEUS, cuja habitação ficava no monte Sião podia aparecer-lhes ao lado do rio Quebar, em meio de todo o paganismo e idolatria sórdidos da vida babilónica. Se qualquer israelita sentisse que estava separado do seu DEUS, bem como do seu Templo (cf. SI 137:4), esta teofania na Babilônia poderia ser entendida como sinal de que DEUS ainda Se importava com o Seu povo, mesmo no castigo do exílio. 39 INTRODUÇÃO b. A pecaminosidade de Israel Ezequiel foi confrontado com reações conflitantes às desgraças recentes da nação. Alguns achavam que o castigo devido pela sua desobediência já fora esgotado pelos eventos de 597 a.C., e que nada restava a fazer senão esperar a repatriação. Outros adotavam a linha fatalista e se consideravam os herdeiros infelizes dos pecados dos seus antepassados pelos quais um DEUS injusto agora os castigava. A maioria sentia certa medida de segurança nisto: como eram o povo do próprio Javé, Ele nunca poderia castigá-los por demais drasticamente sem desprestigiar-Se aos olhos dos pagãos. Uns poucos achavam que Javé já tinha ficado humilhado, e fora demonstrado incapaz diante dos deuses da Babilônia. O modo do profeta tratar destes pontos de vista, conforme é demonstrado no comentário sobre os capítulos 12-24, revela que é competente e disposto a encontrar-se com seus ouvintes no terreno deles e a respoder às objeções que levantam. Na maior parte, no entanto, seu alvo é convencer o povo da sua total indignidade de qualquer consideração da parte de DEUS, a fim de levá-lo pelo caminho da vergonha até chegarem ao verdadeiro arrependimento. Faz isto de duas maneiras: a geral e a específica. No primeiro caso, emprega a alegoria para descrever historicamente a história da persistente infidelidade de Israel à aliança graciosa de DEUS. Três passagens tratam disto: 16:1-63; 20:1-31 e 23:149. Cada uma delas esquematiza o passado de um modo levemente diferente. A parábola da enjeitada (16:1-63) começa com Israel, ou talvez Jerusalém, como uma enjeitada desatraente (“a revolver-te no teu sangue”), mas quando ficou moça e chegou à idade dos amores, o Senhor entrou em aliança com ela, purificou-a e embelezou-a, e deu a ela generosamente riquezas e honrarias de rainha. Como paga por isto, Israel, confiando na sua beleza, prostituiu-se com estrangeiros e desprezou seu Benfeitor divino. O capítulo 20 vê a história de Israel como um ciclo de atos desobedientes, cada um dos quais foi seguido por uma decisão graciosa da parte de DEUS nó sentido de não castigar mas, sim, de reter a Sua mão. É notável aqui a frase repetida: “O que fiz, porém, foi por amor do meu nome, para que não fosse profanado diante das nações, no meio das quais eles estavam” (20:9, 14, 22). A ação de DEUS em revelarSe a Israel, em fazer uma aliança com ele, e até mesmo em discipliná-lo, foi inicialmente para seu benefício (“a fim de que soubessem que eu sou o “SENHOR,” etc.; 20:12, 20, 26), mas em última análise Seus tratos com Israel olhavam além dos próprios interesses daquela nação para a preocupação no sentido de o nome de DEUS ser conhecido e respeitado
40 EZEQUIEL pelo mundo inteiro. Esta era uma doutrina que colocava o orgulho de Israel na sua eleição firmemente no seu lugar adequado. Finalmente, a alegoria das duas irmãs (23: 149) desconsidera até mesmo a possibilidade da inocência original de Israel. Oolá e Oolibá prostituíram-se no Egito na sua mocidade. Dificilmente poderiam ser descritas como mulheres caídas, porque nunca estiveram noutro lugar senão no esgoto. Sua única característica era um apetite insaciável pela fornicação, e o castigo delas seria completo — de modo correspondente. A intenção destes panoramas históricos era envergonhar e horrorizar. Se os estudiosos têm razão em supor que um aspecto regular do culto israelita era uma recitação litúrgjca das tradições sagradas do passado, as “obras maravilhosas” (niplã’ôt) do Saltério, então Ezequiel poderia quase ser acusado de parodiá-las com as distorções monstruosas que fazia. Mas quanto mais de perto eram examinadas, tanto mais evidente apareceria que não eram, na realidade, tão distorcidas como algumas pessoas talvez pensassem. A versão que nosso Senhor deu da história judaica não era mais distorcida, e Seus ouvintes reconheciam que era desconfortavelmente leal aos fatos (Lc 20:9-19). Mais especificamente, Ezequiel cita no capítulo 8 os delitos que, segundo ele sabia, estavam sendo praticados no Templo. Tratava-se, naturalmente, de desvios religiosos, e incluíam a idolatria descarada, a adoração aos animais, a adoração à natureza, e a adoração ao sol. Embora alguns aspectos da sua descrição sugiram que estes possam ter sido episódios mais típicos do que concretos, não deixaram de ilustrar o grau de sincretismo que estava afetando a adoração a DEUS em Jerusalém. Constituíam-se, também, em justificativa abundante para a decisão de DEUS no sentido de castigar o povo de Jerusalém com uma matança que relembraria a praga na ocasião da Páscoa (9: 5-6) e de chover destruição sobre a cidade como nos dias de Sodoma e Gomorra (10:2). Tanto aqui quanto nos três panoramas do passado, os pecados de Israel têm sido principalmente pecados religiosos. O povo tem sido idólatra, fez alianças e se prostituiu com potências estrangeiras (e isto envolvia a subserviência religiosa também, conforme vimos), de modo que não cumpriu suas responsabilidades segundo a aliança, não observou as ordenanças e os juízos que o Senhor lhe deu no Sinai (5:6-7). Numa palavra, profanara o nome santo de DEUS (20:9; 37:20-23); e, porque para Ezequiel DEUS era a santidade, este era o pecado mais horrendo. Em comparação com isto, os pecados sociais que Amós atacara dois séculos antes quase nem são mencionados. 41 INTRODUÇÃO c. O fato do julgamento Esta não era nenhuma doutrina nova para um profeta vétero-testamentário. Mensagens de julgamento tinham sido a produção regular dos profetas já havia muitos anos. Mas este próprio fato tomou mais difícil a tarefa de Ezequiel. Havia muita diferença entre ameaças de julgamento e uma mensagem de que o julgamento era iminente. Foi por isso que Ezequiel sentia tão agudamente sua responsabilidade de agir como atalaia nacional para Israel, a fim de adverti-lo quanto à desgraça que estava para desabar sobre ele. A mensagem de DEUS para Israel era que o DEUS que falava também agiria: “Eu, o SENHOR, o disse, e o farei” (17:24; 22:14; 24:14; 36:36; 37:14). DEUS pronunciara a palavra do julgamento, e os homens já não podiam desconsiderá-la, dando de ombros, com a desculpa de que, embora os profetas tivessem ameaçado, nada acontecera até então (12:22), ou que tudo se referia ao futuro distante (12:27). A palavra de DEUS agora era: “A palavra que falei se cumprirá” (12:28). d. A responsabilidade individual Von Rad71 indicou que a posição de Ezequiel como atalaia era “quase contraditória, visto que é Javé que não somente ameaça a Israel como também, ao mesmo tempo, deseja adverti-lo a fim de que seja salvo.” A possibilidade da salvação de um remanescente é freqüentemente oferecida, mesmo nas predições da destruição (e.g. 5:3,10; 6:8;9:4), e a intenção de Ezequiel ao agir como atalaia é que o perverso se arrependa e salve a sua vida (3:18). Isto é declarado de modo mais explícito em 18:1-29 onde, num contexto de tentação ao fatalismo (18:2-3) Ezequiel faz questão de dizer que cada homem é tratado como um indivíduo por DEUS. Aquilo que lhe acontece não depende puramente da hereditariedade (os pecados do seu pai), nem ainda do meio-ambiente (os pecados da nação), mas, sim, é condicionado pela escolha pessoal. A escolha que importa é a dedicação a DEUS. Destarte, o perverso pode voltar-se da sua perversidade para DEUS, comprovando sua dedicação mediante a obediência aos mandamentos, e sua perversidade não será contada contra ele. Inversamente, o justo deve ser advertido de que não pode confiar na sua justiça como desculpa para brincar com o mal; se assim fizer, demonstrará que sua 71. G. von Rad, Old Testament Theology, vol. II (Trad, ing., 1965), pág. 230. [Editada em português pela ASTE.]
42 EZEQUIEL verdadeira dedicação não é a DEUS, e sua justiça não será creditada à sua conta. Esta não é uma declaração da justificação pelas obras; está dizendo que a vida do homem é uma questão do seu coração. DEUS não tira uma média geral da vida de um homem; é a direção da sua dedicação que conta. E o fato básico da análise feita por Ezequiel da questão inteira é que DEUS não tem prazer na morte do perverso (18:23, 32); quer que ele se converta e viva.72 Este é um individualismo radical que faz mais do que contrabalançar o senso da responsabilidade e da culpa corporativa que tipificava boa parte do pensamento popular pré-exilico. Aparece outra vez em 14:12-20, onde se ensina a lição de que ninguém pode esconder-se por detrás da justiça dos outros, nem sequer de homens tais como Noé, Daniel, e Jó, na destruição que está para cair sobre Jerusalém. A salvação será numa base puramente individual. (Compare o sinal de isenção que foi colocado à testa daqueles que gemem por causa de todas as abominações que se cometiam na cidade: 9:4).73 Não se segue daí que Ezequiel foi, virtualmente, o inventor da religião individual, o protestante entre os profetas, e que tudo antes dele era coletivista. Não somente Jeremias, como também muitos dos salmos individuais e as experiências pessoais de patriarcas e reis dão testemunho da realidade da piedade individual e de uma consciência pessoal de DEUS. Foi o gênio de Ezequiel declarar a aplicação do princípio da responsabilidade individual diante do juízo coletivo que estava para sobrevir a Jerusalém. A destruição estava chegando, mas os homens podiam arrepender-se e ser salvos. Ezequiel, o atalaia, também era Ezequiel, o evangelista. e. A promessa da restauração Embora o arrependimento seja para o indivíduo, a salvação deve ser desfrutada por ele como membro de uma comunidade restaurada. O novo Israel será milagrosamente vivificado pela operação do ESPÍRITO de DEUS, o Único que pode fazer viver os ossos secos (37:5). Será uma comunidade sem as velhas divisões de Israel e de Judápara separá-la (37:17). Desfrutará das bênçãos de uma aliança eterna, e a divisa da aliança: “eles serão o 72. Uma exposição excelente desta passagem acha-se em von Rad, op. cit., vol. I, págs. 3934. 73. O relacionamento entre esta passagem e a intercessão de Abraão em prol de Sodoma é discutido de modo breve no comentário, in loc. 43 meu povo, e eu serei o seu DEUS,” será escrita na sua constituição (11:20; 14:11; 36:28; 37:23, 27). À testa da comunidade haverá “o meu servo Davi,” o Rei Messias (37:24-5). Nenhuma tentativa é feita para identificar esta pessoa, e rebuscamos o livro de Ezequiel em vão para qualquer elaboração deste tema específico. Esta pessoa, no entanto, terá o direito de ser chamada o rei (melek) de Israel, além de ser seu príncipe (nàst’), termo este que na era messiânica futura terá perdido suas implicações pejorativas (cf. 37:25; 45:7, etc.). Remará de modo justo e consciencioso, e cuidará dos fracos e dos aleijados entre o rebanho (34: 23). A terra prosperará e florescerá, e de dentro do santuário na nova Jerusalém fluirá o simbólico rio da vida para regar os lugares desertos da terra (47:1-12). Tudo isto, no entanto, é apenas o aspecto externo da restauração que DEUS promete ao Seu remanescente justo. Internamente, Ele faz a oferta de um novo coração e de um novo espírito para o israelitada individual, de modo que possa ser purificado da imundícia dos seus pecados e da impureza do exílio, e possa ser motivado interiormente para viver de acordo com os mandamentos de DEUS (36:24-28). Nestas palavras Ezequiel dá uma definição adicional à profecia de Jeremias sobre a nova aliança (Jr 31: 31-34), acerca da qual parece ter sido informado com bastantes pormenores, e em especial, explica como esta esperança pode ser efetuada mediante um transplante espiritual, mediante o dom de DEUS, que é um coração de carne em troca do coração de pedra do homem. A mensagem é clara: a maior pedra de tropeço do homem está nele mesmo, e nada pode resolver este problema a não ser a ação graciosa de DEUS na renovação e na regeneração espiritual.74 V. O TEXTO O texto hebraico de Ezequiel sofreu mais do que a maioria dos livros do Antigo Testamento no processo da transmissão, e as notas de rodapé da RSV dão testemunho às muitas ocasiões em que os tradutores tinham de apelar às Versões ou à conjectura a fim de descobrir o sentido de uma frase especialmente obscura. Isto não é surpreendente, porque Ezequiel fez uso de várias palavras raras e termos arquitetônicos que não INTRODUÇÃO 74. Para ura estudo completo e penetrante da mensagem de Ezequiel, que infelizmente foi publicado depois desta Introdução ter sido escrita, ver W. Zimmerli, “The Message of the Prophet Ezekiel,” Interpretation, XXIII, 1969, págs. 131-157. 44 EZEQUIEL se poderia esperar que copistas posteriores conhecessem. Não é sábio, no entanto, corrigir por demais facilmente o texto hebraico, que talvez seja difícil, com base num texto muito mais inteligível da LXX, porque nunca podemos ter certeza se o tradutor da LXX não estava tentando melhorar seu original sem bases adequadas para fazê-lo. A LXX permanece sendo, naturalmente, uma ajuda inestimável para todos quantos procuram descobrir o melhor texto hebraico. Ela representa uma tradução feita para o grego, provavelmente perto do fim do século III, a.C., e dá testemunho, portanto, de uma etapa muito anterior na transmissão do texto hebraico do que o MSS dos quais nossas Versões são traduzidas. Mas antes de seus textos serem aceitos como sendo superiores àqueles do texto hebraico posterior, o estudioso deve ter certeza dos seguintes aspectos: (i) deve ter certeza de que o texto da LXX é correto e não sofreu deturpação, ele mesmo, no decurso da transmissão; (ii) deve julgar com exatidão qual era o texto hebraico que subjazia a tradução na LXX; (iii) para fazer isso, precisa conhecer as capacidades do tradutor da LXX, e.g. se conhecia bem o hebraico, ou apenas toleravelmente, se o traduzia ao pé da letra ou idiomaticamente, se não tinha hesitação em incorporar uma tendência teológica toda sua, e assim por diante.75 No caso da LXX de Ezequiel, parece provável que a tradução foi feita por duas ou até três pessoas, embora houvesse um redator geral que produziu um efeito unificador sobre o livro inteiro.76 Estas pessoas fizeram seu trabalho de modo competente, mas em certo número de ocasiões parafrasearam ao invés de traduzirem; omitiam aquilo que consideravam frases repeticiosas ou encaixavam comentários explanatórios sem autoridade alguma senão a deles próprios; e há ocorrências em que alteraram a tradução para fazê-la concordar com o próprio ponto de vista deles. Destarte, a necessidade de grande cuidado em interpretar a LXX é sublinhada. No presente comentário, a política tem sido de cautela, e a emenda na base da LXX tem sido seguida somente no caso em que o hebraico tem parecido ser, ou ininteligível, ou obviamente deturpado. As demais Versões, a Siríaca, a Latina Antiga e a Vulgata, têm valor apenas limitado para corrigir o Texto Massorético, porque todas dependem pe75. Isto, necessariamente, toma por solucionada a questão dos assim-chamados estudos proto-septuagintais, viz., a questão da possibilidade de se descobrir um texto original da LXX, ou de se certo número de recensões paralelas sempre existiram lado a lado. Para um resumo da posição, ver OTMS, págs. 250-252. 76. Ver H. St. J. Thackeray, The Septuagint and Jewish Worship (Schweich 45 INTRODUÇÃO sadamente da LXX. A LXX de Ezequiel é bem representada nos códices principais, mas, em anos recentes, interesse especial tem sido focalizado nos papiros Scheide, que contêm um testemunho do início do século III d.C. ao texto grego de Ezequiel 19:12-39: 29.77 Um resultado interessante destes estudos tem sido a sugestão de que a forma incomum do nome divino no livro de Ezequiel, “o SENHOR DEUS” (’adõnãy yahweh), foi produzida pela expansão de um yahweh original por escribas contrários à pronúncia do nome santo à sua pronúncia. A pronúncia mais tarde a padronizar-se sem a necessidade de qualquer inserção no texto, mas permaneceu no texto hebraico transmitido de Ezequiel. Lectures, 1921); Nigel Turner, “The Greek Translators of Ezekiel,” JTS, VII, 1956, págs. 12-24. 77. Para uma bibliografia destes estudos, ver IB, pág. 6 8, nota 77.
ANÁLISE
I. A VISÃO, A COMISSÃO E A MENSAGEM DE EZEQUIEL (1:1- 5:17)
a. Introdução (1:1-3)
b. A visâo do carro-trono do Senhor (1:4-28)
c. A comissão para ser porta-voz do Senhor à casa de Israel (2:1- 3:15)
d. O atalaia silencioso (3:16-27)
e. Quatro mensagens encenadas (4:1-5:17)
i. O cerco de Jerusalém (4:1-3)
ii. Os dias do castigo de Israel e de Judá (4:4-8)
iii. A fome em Jerusalém (4:9-17) iv. A tríplice ruína do povo de Jerusalém (5:1-17)
II. ORÁCULOS DE JUÍZO (6:1-7:27)
a. A profecia contra os montes de Israel (6:1-14)
b. “O fim vem” (7:1-27)
III. A VISÃO DO CASTIGO DE JERUSALÉM (8: 1-11:25)
a. As idolatrias sendo praticadas no Templo (8:1-18)
b. Os sete algozes: o castigo pela matança (9:1-11)
c. O carro-trono do Senhor: o castigo pelo fogo (10:1-22) d. A morte de Pelatias (11:1-13)
e. Um novo coraçSo para o povo de DEUS no exílio (11:14-25)
IV. ORÁCULOS ACERCA DOS PECADOS DE ISRAEL E JERUSALÉM (12:1-24:27)
a. Mais duas mensagens encenadas (12:1-20)
47 INTRODUÇÃO
i. Indo para o exílio (12:1-16)
ii. O terror dos habitantes de Jerusalém (12:17-20)
b. Corrigidos dois ditos populares (12:21-28)
c. Profecia contra os profetas e as profetizas de Israel (13:1-23)
d. A condenação daqueles que se entregam àidolatria (14:1-11)
e. Os poucos justos não evitarão o juízo (14:12-23)
f. A parábola da videira (15:1-8)
g. Jerusalém, a infiel (16:1-63)
h. A parábola das duas águias (17:1-24)
i. A lei da responsabilidade individual (18:1 -32)
j. Uma lamentaçSo sobre os reis de Israel (19:1-14)
k. Um retrospecto da história de Israel e dos planos futuros de DEUS para ele (20:1-44)
1. O julgamento pelo fogo e pela espada (20:45-21:32)
m. Três oráculos sobre a imundícia de Jerusalém (22:1-31)
n. Oolá e Oolibá (23:149)
o. A panela enferrujada (24:1-14)
p. A morte da esposa de Ezequiel (24:15-27)
V. ORÁCULOS CONTRA AS NAÇÕES (25:1 -32:32)
a. Contra nações vizinhas (25:1-17)
b. Contra Tiro e Sidom (26:1-28:26)
i. A profecia da destruição de Tiro (26:1-21)
ii. O naufrágio de Tiro (27:1 -36)
iii. A queda do príncipe de Tiro (28:1-10)
iv. A lamentação contra o rei de Tiro (28:11 -19)
v. A profecia contra Sidom (28:20-26)
c. Contra o Egito (29:1-32:32)
i. Os pecados do Egito (29:1 -16)
ii. O Egito e a Babilônia (29:17-21)
iii. O julgamento contra o Egito (30:1-19)
iv. Quebrado o braço de Faraó (30:20-26)
v. O grande cedro (31:1-18)
vi. Lamentação contra Faraó (32:1-16)
vii. Faraó desce para o Sheol (32:17-32)
VI. ORÁCULOS RELACIONADOS COM A QUEDA DE JERUSALÉM (33:1-37:28)
a. Reafirmados os deveres do atalaia (33:1 -20) 48 EZEQUIEL
b. A cidade cai, mas o povo não se arrepende (33:21 -33)
c. Os pastores do passado e o Pastor do futuro (34:1-31)
d. A denúncia da traição de Edom (35:1-15)
e. Uma terra restaurada e um povo transformado (36:1-38)
f. O renascimento espiritual do povo (37:1-28)
VII. A PROFECIA CONTRA GOGUE (38:1 -39:29)
a. A invasão dos exércitos de Gogue (38:1-16)
b. O massacre (38:17-39:24)
c. Os propósitos finais de DEUS para Israel (39:25-29)
VIII. OS PLANOS PARA A NOVA JERUSALÉM (40:148:35)
a. A visão do templo (40:142:20)
b. Volta a glória do Senhor (43:1 -12)
c. Regulamentos para o culto no templo (43:1346:24)
i. O altar, suas dimensões e sua consagração (43:13-27)
ii. Os ministros, seus deveres e qualificações (44:145:8)
iii. As ofertas e outros regulamentos (45:946:24)
d. As águas vivificantes (47:1-12)
e. A divisão da terra (47:1348:35)
49 COMENTÁRIO
I. A VISÃO, A COMISSÃO E A MENSAGEM DE EZEQUIEL (1: 1-5:17)
a. Introdução (I: I-I3) Estes versículos introdutórios consistem em duas declarações distintas, uma na primeira pessoa e a outra na terceira pessoa. O primeiro versículo dá uma data — no trigésimo ano, mas temos de adivinhar como esta deve ser calculada — e descreve o que aconteceu a Ezequiel junto ao rio Quebar com a frase se abriram os céus, e eu tive visões de DEUS. Esta frase naturalmente se liga com v. 4 onde o conteúdo da visão é descrito também na forma autobiográfica. À primeira vista, os w. 2 e 3 parecem não ter relacionamento com seu contexto. Repetem a localidade do ministério profético de Ezequiel, junto ao rio Quebar; introduzem uma nova data, com o mesmo dia do més mas um ano diferente, embora desta vez seja ancorada num sistema reconhecido de datação, e descrevem o que aconteceu a Ezequiel, não em termos de experiência visionária, mas, sim, nos termos proféticos mais tradicionais, veio a palavra do SENHOR, e esteve sobre ele a mão do SENHOR. Alguns argumentariam que temos aqui dois sobrescritos à obra do profeta, que vêm de coletâneas originais diferentes. O v. 1, no entanto, faz tão claramente parte do capítulo que se segue a partir do v. 4, que é preferível considerar que esta é a própria maneira de Ezequiel introduzir a visão que se constituiu na sua vocação, e entender que os w. 2 e 3 são uma nota parentética, fornecida, possivelmente, a fim de explicar o trigésimo ano enigmaticamente indefinido com que começa o livro.
50 EZEQUIEL 1:1-3 Na forma em que o livro chegou até nós, os w. 2 e 3 são parte integrante do todo, porque fornecem não somente uma situação histórica para a visão de Ezequiel, como também um título necessário para a obra, fornecendo as informações costumárias acerca da identidade do autor. Esta matéria já foi discutida mais extensivamente na Introdução,1 onde notamos que a data era provavelmente o trigésimo ano da idade de Ezequiel que coincidia com o quinto ano do cativeiro de Joaquim, ou seja: 593 a.C. E se tivermos razão em supor que esta era a idade em que um sacerdote teria assumido seus deveres no Templo, ficará claro que Ezequiel considerava que sua visão e sua chamada para ser o porta-voz de DEUS aos exilados veio num ponto crucial na sua vida. Era, em certo sentido, uma compensação pelo ministério sacerdotal que o infortúnio do exílio arrebatara dele. Quando seu momento de ministério estava para começar, DEUS o conclamou para outra esfera de trabalho. O sacerdote foi comissionado como profeta. Não há contradição entre as idéias da experiência visionária, expressada no v. 1, e a palavra do SENHOR vindo a Ezequiel no v. 3. Esta última é, naturalmente, a expressão mais freqüentemente associada com o profeta do Antigo Testamento (1 Sm 15:10; 1 Rs 12:22; Is 38:4; Jr. 1:2; Os 1:1; J11:1). Mas o profeta israelita também era um vidente (Heb. rò’eh ou hôzeh). A primeira palavra é usada em 1 Samuel 9:9 para denotar o nome anteriormente dado ao nâbt\ “profeta,” mas não é, de modo algum, restrita ao uso arcaico: Isaías a emprega em 30:10, e o Cronista descreve tanto Samuel quanto Hanani com este termo. A segunda palavra tem mais o significado de “ver uma visão” e também é usada, especialmente pelo Cronista, como um título para os profetas do passado, tais como Gade, Ido e Asafe. Seu emprego por Amazias, o sacerdote de Betei, quando, com desprezo, mandou Amós voltar para sua terra natal de Judá e profetizar ali (“Vai-te, ó vidente” ; ver Am 7:12) não é típico. Na verdade, a profecia de Isaías começa com as palavras: “Visão (hàzôn) de Isaías . . . que teve (hãzâ) a respeito de Judá e Jerusalém.” A experiência visionária era então uma marca tão natural e reconhecida do profeta quanto era a palavra compulsiva do Senhor dentro dele. Estes dois aspectos da revelação de DEUS à consciência profética acham-se lado a lado em, por exemplo, 1 Samuel 3:21: “Continuou o SENHOR a aparecer em Silo, enquanto por sua palavra se manifestava ali a Samuel.” Sobre a localidade do rio Quebar, ver a Introdução, pág. 21. (1) Ver págs. 14ss.
51 EZEQUIEL 1:4-9 b. A visão do carro-trono do Senhor (1:4-28) A teofania que Ezequiel agora descreve deve ter sido experimentada por ele quando estava sozinho na planície arenosa a certa distância do arraial principal dos exilados, que era seu lar. Este tanto é indicado por 3:14-15, e aqueles versículos também ilustram o grau de liberdade para perambular que ele e seus patrícios aparentemente desfrutavam na Babilônia. 4. A sós com seus pensamentos, e sem dúvida compartilhando dos conceitos melancólicos dos seus colegas exilados, no que diz respeito à sua separação da presença de DEUS em Jerusalém, de repente teve consciência de uma nuvem preta tempestuosa que se avolumava no norte. E possível que na sua experiência real começasse observando algum fenômeno natural deste tipo, a partir do qual desenvolveu-se a visão sobrenatural da glória do Senhor que ocupa a maior parte deste capítulo. O físico e o visível levaram para o espiritual e o visionário. Alternativamente, o acontecimento inteiro, do começo ao fim, foi uma experiência visionária, sem ponto de partida na realidade. De qualquer maneira, a descrição da visão avança do normal para o supranormal, começando com uma nuvem de trovão, preta e ameaçadora, com o brilho do sol do deserto iluminando suas extremidades, e com raios riscando o céu escurecido. A última frase do v. 4 começa a mostrar que este é mais do que um furacão comum dos desertos: sua aparência é vividamente descrita “como metal brilhante que saía do meio do fogo.” A palavra hebraica rafa hasmal, empregada aqui e no v. 27, bem como em 8:2, não é “âmbar” (ARC), mas, sim, algum tipo de metal brilhante: em todos os casos, descreve o esplendor ofuscante do Senhor, e assim prepara o caminho para os aspectos sobrenaturais da visão que se segue. 5-11. A atenção do profeta é focalizada primeiramente nos quatro seres viventes grotescos que sustentavam a plataforma ou firmamento (22- 23) por cima do qual ficava o tróno de Javé. Os seres viventes eram basicamente de forma humana, o que presumivelmente significa que andavam retos (cf. v. 7: as suas pernas eram direitas), mas cada um tinha quatro rostos olhando em quatro direções diferentes, quatro asas além de mãos humanas, e a planta dos seus pés era como a de um bezerro. Esta última referência não parece ter relevância discemível, e alguns tradutores, portanto, revocalizaram a palavra para dar o sentido “arredondada,” mas isto dificilmente ajuda. É possível que o bezerro tipifique agilidade (cf. SI 29:6; Ml 4: 2), senão, devemos concluir que qualquer sentido que tivesse então, agora está perdido para nós. 10. Os quatro rostos representavam as formas mais altas de vida a serem achadas entre os vários reinos da criação de DEUS: o homem como supremo vinha primeiro, e olhava para a frente; o leão e o boi eram os reis entre as feras e os animais domésticos (o que o escritor de Gênesis 1 chama de “animais selváticos” e “animais domésticos” [“gado” em ARC]); e a águia era a principal das aves do céu. Os seres viventes que rastejam e os peixes do mar não foram representados! Os seres viventes formavam um quadrado e, visto que cada um olhava para fora com seu rosto humano, o efeito deste padrão simétrico era que, seja qual for a direção da qual se olhava os quatro seres, um rosto diferente era visto de cada lado, de modo que todos os quatro rostos eram visíveis ao mesmo tempo de qualquer ângulo. O rosto mais perto de quem olhava seria mostrado como o de um homem, o do lado esquerdo ficaria na sua frente como boi, o do lado direito, como leão, e o ser no fundo estaria revelando sua aparência como águia. É tentador procurar algum tipo de protótipo para estes seres viventes entre as figuras animais compostas esculpidas nos templos babilónicos e nas portas das cidades hetéias, mas não há evidência em prol de nada mais do que uma influência geral das formas de arte egípcias e doutras partes do Oriente Próximo com que Ezequiel deve ter tido familiaridade.2 Quase certamente a forma final é do próprio Ezequiel, e reflete sua paixão pela simetria que veremos outra vez na arquitetura do futuro templo. O quadrado oco que estes seres viventes formavam era realizado por serem ligados juntos às pontas das suas asas. Apenas duas das suas quatro asas eram estendidas para este propósito, sendo que as outras eram usadas para ocultar seus corpos (11). Em Isaías 6 os serafins tinham fceis asas, das quais duas eram usadas para cobrir o rosto em adoração, duas para cobrir os pés em modéstia, e com as outras duas voavam. Em Ezequiel não havia necessidade de movimento, e as asas esticadas imóveis simplesmente serviam de suportes para a plataforma em cima. Embora não estivessem adorando a Javé, a santidade da presença divina era o suficiente para exigir que seus corpos humanos nus fossem cobertos de modo decente. Além das asas, também tinham mãos das quais fariam bom uso mais tarde (10:7) É melhor traduzir o v. 8 com Cooke, assim: “E as mãos de um homem estavam (2) A. comparação mais estreita que a arqueologia oferece é com as figuras de querubins que ladeiam o trono de Hirão, rei de Biblos (ver IDB, vol. 1, págs. 131-2; também NDB, figs. 186 e 99). Nos lados dos quatro deles.” O hebraico aceita este significado, e nos poupa a necessidade de atribuir quatro mãos a cada ser vivente, o que algumas versões parecem subentender. 12-14. No meio do quadrado oco havia carvão em brasa (13), aspecto este que Isaías também tinha na visão dele, só que o dele estava empilhado no altar. Para Ezequiel, o fogo que simbolizava o julgamento estava no coração da presença de DEUS, e periodicamente resplandecia em relâmpagos. (Cf. SI 18:8; 50: 3; e para a referência às tochas, Gn 15:17; Êx 20:18). O resultado de ter este âmago de fogo era que, por onde iam os seres viventes, ziguezagueavam à semelhança de relâmpagos (14). Não havia, no entanto, nada que se pudesse chamar de movimento independente para os seres viventes: a totalidade do carro-trono do qual faziam parte movimentava-se de modo uniforme, juntamente sob o impulso do espírito (12; heb. rúah). Esta palavra tem sido compreendida de várias maneiras como sendo (a) o ESPÍRITO de DEUS, (b) o vento que trouxe a grande nuvem do norte, (c) o espírito dentro dos seres viventes, e (d) “a energia vital ou impulso mediante o qual DEUS, do Seu trono, agia sobre eles.”3 Todos estes significados podem ser atribuídos à redação em hebraico. A semelhança da frase no v. 20: “o espírito dos seres viventes,” sugere que um dos últimos dois significados deva ser preferido. Destes, porém, (c) subentende quase que os seres viventes se movimentavam segundo seu próprio impulso interno, e isto é menos provável do que o fato deles serem motivados pelo impulso de DEUS agindo dentro deles. 15-18. Ao lado de cada um dos seres viventes havia uma roda, e era esta que fazia o contato com o chão. Quanto à aparência, era como o berilo (16; heb. tarsís), pedra esta que Petrie identificou como o jaspe amarelo,4 nias que a maioria dos comentaristas chama de “topázio”, seguindo Myers.s As versões antigas a traduziram como “crisólito,” mas a questão da sua identidade geológica não é solucionada assim. O berilo é uma pedra de cor esverdeada, e é bem diferente. Os w 16b e 17 sugerem que cada roda consistia em duas rodas, provavelmente discos sólidos, que se dividiam em partes iguais em ângulos retos, permitindo, desta maneira, o movimento em qualquer uma das quatro direções sem serem giradas. O v. 17: em quatro direções, quer dizer, nas quatro direções para as quais os seres viventes olhavam. (3)Cooke, pág. 15. (4)HDB, s.v. “ Stones, Precious.” {5)EB, col.4807.18. Iit. “Quanto às cambotas, altura a elas e medo a elas”, i.é, eram altas e aterrorizadoras, descrição esta que é aparentemente confirmada por estarem cheias de olhos. O hebraico não é fácil e as versões tiveram dificuldade em traduzi-lo, mas o TM pode fazer sentido, e é melhor aceitá-lo do que procurar melhorar o texto, na maneira em que muitos estudiosos ocidentais consideram irresistível. 19-21. A descrição até esta altura prepara o caminho para aquilo que há de seguir. A Deidade é, por assim dizer, levada para cima na plataforma, sustentada pelos representantes da Sua criação. O homem, apesar da sua superioridade ao reino animal, é igual a eles em agir como guarda e servidor do seu Senhor. Cumpre, porém, seus deveres sem movimento e aparentemente sem esforço. As rodas se movimentam, mas os seres viventes estão imóveis, e, mesmo assim, o palanquim inteiro viaja com rapidez e leveza acima da terra, em qualquer direção que o impulso orientador dirige. E, como se fosse para demonstrar que DEUS não está preso à terra, o carro-trono pode se elevar para os ares e voar. Móvel sem esforço algum é o DEUS da visão de Ezequiel. 22, 23. A tradução firmamento não é uma boa interpretação para o hebraico ràqta' no v. 22. Tem sua origem na palavra firmamentum, da Vulgata, que é uma interpretação literal do grego sterôma, que, por sua vez, procura de modo bem correto, indicar o significado hebraico dalguma coisa “tomada firme”, por bater ou carimbar, e.g., uma obra de metal martelado. Geralmente, se refere à curva dos céus, que, para o observador na terra, tem a aparência de uma vasta bacia azul, invertida. Em passagens como Génesis 1:6; Salmo 19:1; 150: l;Daniel 12:3,claramente tem este significado, mas em Ezequiel tem o sentido de uma superfície ou plataforma firme e nivelada. No livro do Apocalipse, esta mesma frase fica sendo “um como que mar de vidro, semelhante ao cristal” diante do trono de DEUS (Ap 4:6). A menção de cristal no v. 22 é derivada da LXX, que traduz assim o hebraico querah, gelo ou geada. As traduções modernas seguem a LXX, mas realmente a expressão acompanhante, que metia medo, é mais apropriada para “gelo” do que para “cristal”, e seria melhor entender que Ezequiel viu “algo como uma plataforma, brilhando horrivelmente como gelo, estendida por sobre as suas cabeças.” 24, 25. Enquanto movimentava-se, havia um zumbido estranho, à medida em que os quatro pares de asas esticadas vibravam poderosamente. O barulho era como uma torrente montanhosa (muitas águas) ou como o ribombar do trovão (a voz do Onipotente) ou como o som de um exército avançando. A LXX omite todas estas três expressões, menos a primeira, mas são símiles vívidas, e transmitem bem a idéia da terribilidade de DEUS, ouvida pelo ouvido, bem como vista pelos olhos. Além do som do movimento, o profeta também menciona a voz de DEUS que pode ser ouvida vindo de cima da plataforma. Nenhuma palavra é citada no v. 25, mas o DEUS da visão mais tarde estará falando a Ezequiel e, assim, é mencionado o som de uma voz nesta etapa inicial da descrição. 26-28. Finalmente, o profeta pode erguer mais os seus olhos para descrever o que está em cima da plataforma. Ele já estava começando a fazer isto com a máxima cautela, iniciando com os aspectos mais distantes, mas, finalmente, chega a descrever o trono (como safira, ou “lápis lazúli”, uma pedra altamente estimada no mundo antigo) e Aquele que Se sentava sobre ele. Aqui, ou seus olhos ou sua coragem lhe faltam. Embora os quatro seres viventes pudessem ser descritos com pormenores, tudo quanto podia dizer acerca de DEUS era que tinha forma humana e que era como fogo (27). Todavia, mesmo dizer isto, era incrivelmente ousado, porque não era Javé invisível e, portanto, indescritível? Era uma idéia profundamente embutida no pensamento israelita de que nenhuma pessoa comum podia fixar os olhos em DEUS e viver para descrever a experiência! Agar, Jacó, Moisés, Gideão e Manoá, todos tiveram experiências notáveis que comprovavam a regra (Gn 16:13; 32:30; Êx 33 :20-'23; Jz 6:22; 13: 22; cf. Dt 5: 24), mas no caso deles, tiveram um encontro com quem parecia inicialmente ser uma pessoa humana, que, subseqüentemente, revelou ser um anjo ou alguma outra manifestação de DEUS. O senso de choque que tiveram era baseado no fato de se tomarem sábios depois do evento e, portanto, em não ter prestado a devida deferência ao mensageiro divino. No caso dos profetas, no entanto, algum tipo de experiência com DEUS mesmo puramente auditiva ou, como aconteceu com Isaías e Ezequiel, numa visão, era quase uma necessidade a fim de autenticar os seus ministérios. Para Moisés, DEUS falou do meio de uma sarça ardente (Êx 3:1-6). Jeremias não teve experiência visual, embora sua chamada fosse associada a duas mensagens baseadas na visão de uma vara de amendoeira e de uma panela ao fogo (Jr 1:11 ss.). Isaías, porém, teve uma visão muito impressionante, a totalidade da qual narra (Is 6), exceto pela real aparência do Senhor, cujas abas das vestes enchiam o templo. Ezequiel abre um pouco mais a porta, para que DEUS seja visto num contorno humano, porém com esplendor tão ofuscante que nada mais poderia ser visto ou dito. Resta para Daniel ir até o fim e descrever em detalhes as feições do Ancião de dias (Dn 7 :9sss). É isto apenas outro exemplo de antropomorfismo? Não indica que a imagem e semelhança de DEUS à qual o homem foi criado era, na realidade, a aparência física, e não sua capacidade espiritual? Embora Ezequiel conhecesse os primeiros capítulos de Gênesis e empregasse sua linguagem e expressões figuradas (especialmente no capítulo 28), nada há para indicar que foi assim. Era uma doutrina profundamente sustentada pela religião israelita desde Moisés, que DEUS não podia ser expressado visivelmente, e, exatamente por esta razão, a idolatria era excluída. Dada, porém, a possibilidade de uma teofania, nenhuma forma, senão a forma humana, poderia ter sido usada para representar a Deidade. Não era, porém, nenhum mero ser humano que Ezequiel viu: Sua radiância era cercada pela glória de um arco-íris, e o profeta não podia mostrar seu temor de outra maneira senão caindo com o rosto em terra diante do seu DEUS (28).